“At Los Alamos things were pretty tense from all the work, and there wasn’t any way to amuse yourself (…). But I discovered some drums that the boys’ school, which had been there previously, had collected: Los Alamos was in the middle of New Mexico, where there are lots of Indian villages. So I amused myself (…) just making noise, playing on these drums. I didn’t know any particular rhythm, but the rhythms of the Indians were rather simple, the drums were good, and I had fun  (…). When the war was over, and we were going back to “civilization,” the people there at Los Alamos teased me that I wouldn’t be able to play drums any more because they made too much noise. And since I was trying to become a dignified professor in Ithaca, I sold the drum that I had bought sometime during my stay at Los Alamos” (Richard Feynman — Prêmio Nobel de Física, 1965, que trabalhou no Projeto Manhattan).

O convite para publicar o texto que se segue na Ponto.Urbe, a revista eletrônica do Núcleo de Antropologia Urbana, renova a gentileza que fez com que, há cinco anos, um artigo de minha autoria tivesse sido publicado na edição comemorativa dos 50 anos da Revista de Antropologia. A “Apresentação” do número explicava a publicação do texto sustentando que se tratava de “ressaltar, não apenas a presença e importância da etnografia ao longo das páginas da Revista, desde os primeiros números (…), como o papel central e específico que ocupa na prática e na análise antropológica” (Magnani 2003: 314). E, de fato, este era um dos pontos centrais de “Os Tambores dos Mortos e os Tambores dos Vivos. Etnografia, Antropologia e Política em Ilhéus, Bahia” (Goldman 2003).
No convite feito agora, o editor daquele número especial, José Guilherme Magnani, me sugeriu retomar a questão da etnografia (“considerações, dilemas, desafios contemporâneos…”) e me perguntou se “dá ainda para tirar algum som” daqueles tambores. Creio que estes, na verdade, não pararam de tocar nesses últimos anos. Primeiro, em mim mesmo — e não foi por acaso que utilizei o texto como prólogo de meu livro sobre a política em Ilhéus tal qual pensada pelos ativistas do movimento negro local (Goldman 2006). Segundo, na simpatia com que foi recebido por muitos, em especial por estudantes que começam a se envolver com o trabalho de campo. Finalmente, mas não menos importante, em algumas observações menos simpáticas que sempre acompanharam as diversas apresentações que fiz do texto.
Assim, ao apresentar uma de suas primeiras versões em um encontro de antropologia, soube que alguém comentou que etnógrafos devem escutar seus informantes, não tambores — ainda mais quando tocados pelos mortos. Reação que não é difícil de compreender quando alguém se atreve a utilizar como instrumentos metodológicos uma experiência mística e um sonho! Mas, justamente, um outro ponto do artigo era tentar ilustrar e pensar os limites da nossa capacidade de levar os nativos efetivamente a sério, seja quando pesquisamos candomblé, seja quando estudamos política.
Por outro lado, não foram poucos os que observaram, direta ou indiretamente, o estranho uso que o texto faz de muitas idéias e uns poucos conceitos extraídos do pensamento de Deleuze e Guattari. Aqui, o autor pode ser preso tanto porque tem um cachorro como porque não o tem. Assim, do ponto de vista de antropólogos menos simpáticos às relações de sua disciplina com a filosofia — ou, em todo caso, com a filosofia deleuzeguattariana —, parece difícil compreender como noções aparentemente tão abstratas ou estranhas como “devir” ou como “minoritário” poderiam servir para pensar uma atividade tão concreta e tão terra-a-terra quanto o trabalho de campo ou mesmo a etnografia. Por outro lado, cientistas sociais mais simpáticos a Deleuze e Guattari — para não falar em filósofos mais ou menos devotos — não deixaram de assinalar criticamente essa tentativa paradoxal de tentar salvar uma antropologia “tradicional” utilizando uma filosofia revolucionária.
O problema aqui é que, ao menos do meu ponto de vista, dois dos pontos mais interessantes da filosofia de Deleuze e Guattari consistem justamente, primeiro, no fato de seus conceitos só poderem ser criados e utilizados a partir de experiências muito concretas;  e segundo — pragmatismo “oblige” — de, conseqüentemente, só existirem em sua capacidade de utilização e transformação de acordo com as variadas experiências de diferentes usuários dedicados a propósitos muito heterogêneos.
É nessa direção que a antropologia pode reencontrar os passos da esquizoanálise de Deleuze e Guattari, permitindo vislumbrar uma espécie de esquizoetnologia, onde a potencialidade, em geral reprimida, do par paciente-analista explorada pela primeira se desloca para aquela do par nativo-etnógrafo. Redefinição da antropologia que, por sua vez, deveria afetar e contaminar produtivamente práticas e pensamentos inspirados nesses mesmos filósofos. Se as tentativas coletivas de reapropriação da vida por meio de processos de singularização exigem, como escreveu Guattari (1986: 118), uma “nova teoria dos arcaísmos”, e se estes consistem não em regressões, mas na “utilização diferente de elementos preexistentes, de comportamento ou de representação, para construir uma outra superfície de vida ou um outro espaço afetivo, para dispor de um outro território existencial”, a antropologia poderia ser parte desse processo. Ela seria, assim, uma espécie de cartografia de territórios existenciais reais e/ou em vias de existir — desde que entendamos por território o “conjunto dos projetos ou das representações sobre as quais vão se desenvolver pragmaticamente uma série de comportamentos, de investimentos, no tempo e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”.
Gostaria, pois, de aproveitar o convite e tentar não apenas refletir sobre questões levantadas no texto de 2003, como, principalmente, tentar articulá-lo com o que vim fazendo desde então. Ou, como escrevi a ele, para “tirar algum som” daqueles tambores é preciso trocar seus couros, dar-lhes um banho de dendê e afiná-los. Começo, contudo, com uma lembrança mais antiga.
Há mais de dez anos, em um encontro que serviria de base para a constituição do Núcleo de Antropologia da Política (NuAP), Moacir Palmeira propôs que uma das questões que todos os membros do núcleo deveriam contemplar era a dos efeitos produzidos pelo fato de se pesquisar política em contexto etnográficos onde o mesmo pesquisador, em outro momento, havia pesquisado outro tema qualquer. Nunca levamos efetivamente a sério, de forma coletiva, a sugestão, mas, pessoalmente, devo dizer que ela nunca saiu da minha cabeça. Sem dúvida, porque, a partir de 1996, fui estudar política no mesmo lugar em que, anos antes, eu havia estudado candomblé.
O texto sobre os tambores refletia, assim, esse movimento de passagem de um estudo sobre candomblé para um estudo sobre política no mesmo contexto etnográfico. Ora, há cerca de dois anos, estou tentando retornar aos estudos sobre o candomblé — sempre no Matamba Tombenci Neto, terreiro de nação angola, situado no bairro da Conquista, em Ilhéus, no sul da Bahia. O que tornaria possível completar a reflexão do texto anterior a partir desse segundo movimento, desta vez da política ao candomblé.
Esse retorno ao candomblé, entretanto, foi muito influenciado e, até certo ponto, determinado, por uma experiência teórico-pedagógica que eu e Eduardo Viveiros de Castro (meu antigo orientador e atual colega) tentamos conduzir já há cerca de três anos no PPGAS do Museu Nacional. Experiência que envolveu, entre outras coisas, a criação de dois sites de tipo “wiki” na Internet (o Amazone e o Abaeté — atualmente em fase de migração para outra plataforma), de uma “rede”, que batizamos de “Rede de Antropologia Simétrica Abaeté”, da realização ininterrupta de seminários todas as sextas-feiras à tarde (!) e de dois cursos realizados em 2006, um no Museu Nacional e um na USP. O curso do Museu foi por nós batizado de “Introdução a uma Antropologia Pós-Social: Redes, Multiplicidades e Simetrizações”; o da USP se chamou “Simetria, Reversibilidade e Reflexividade na Antropologia Contemporânea”.
Como escreveu Guimarães Rosa (em Tutaméia), “tudo se finge primeiro; germina autêntico é depois”. Foi apenas ao longo desses cursos que começamos a levar a sério a expressão “pós-social”. Fomos compreendendo, creio, que só faz sentido empregar o prefixo “pós” quando ele é sinônimo de “pré”. Ou seja, só vale a pena falar em “pós-social” quando já se está pensando em algo ainda por vir, mas que não sabemos e não podemos saber o que é. Este ponto é crucial porque só assim podemos nos livrar dos fantasmas evolucionistas que espreitam expressões como essas: apostamos em um futuro, mas não sabemos e não podemos saber que futuro é esse. E se o chamado “pós-modernismo” (dentro e fora da antropologia) nunca foi capaz de sugerir respostas tão interessantes quanto as questões que levantava, isso se deve, exatamente, à sua insistência em se apresentar como um “estágio” posterior (e superior) à modernidade, em lugar de se pensar como pura transição.

O primeiro passo na direção desse futuro que não podemos saber qual é consiste em esboçar linguagens conceituais alternativas, capazes de substituir noções tidas por adquiridas. Por quê? Porque já faz algum tempo que noções como sociedade, identidade e história (entre outras) começaram a se assemelhar a esses remédios que perderam seu prazo de validade (Latour 2005: 160) e que, em um primeiro momento, se tornam inócuos para, mais tarde, passarem a produzir efeitos essencialmente negativos. Em outros termos, essas noções parecem ter perdido seu poder de nos fazer pensar. Para readquirir esse poder, não basta, é claro, se contentar com os “outros” que cada noção dessas contém como seu reverso: indivíduo, cultura, natureza, pluralismo, relativismo etc. Mais, ou menos, que “criticá-las”, trata-se de abandoná-las de forma radical em benefício de novas construções conceituais. Ocorre, apenas, que no caso da antropologia — ciência empírica e ciência do observado, como já lembrava, há muito tempo, Lévi-Strauss — essas construções conceituais estão necessariamente submetidas à pesquisa etnográfica e a um ponto de vista que não é o nosso.
Claro que a elaboração de linguagens alternativas nunca foi coisa fácil, nem consensual — e nem haveria porque sê-lo. Apesar disso, no caso brasileiro, onde dificilmente discordâncias intelectuais são aceitas como motores potenciais para a produção de novas idéias, a tarefa parece particularmente complicada. Como sabemos, aqui adoramos os debates intelectuais e mandamos nossos alunos estudar, por exemplo, as famosas disputas entre Leach e Fortes ou entre Sahlins e Obeysekere. Mas nós os adoramos desde que sejam travados bem longe, em Cambridge, em Chicago ou em algum outro lugar do primeiro mundo antropológico. Quando os debates acontecem aqui mesmo, entre nós, costumamos imediatamente procurar as (más) intenções pessoais subjacentes e imputar a pelo menos um dos lados em oposição propósitos divisionistas destrutivos, concluindo que o melhor é evitar o assunto. Tudo se passa, como observou judiciosamente Ordep Serra (1995: 8-9), como se entre nós tendesse a vigorar “uma curiosa regra da etiqueta (…): a praxe de só discutir com os mortos” — quando qualquer pessoa de bom senso sabe que, bem ao contrário, que com os mortos não se deve discutir!
No nosso caso, a dificuldade talvez derive de dois pontos sobre os quais, não obstante, não é possível deixar de insistir. Primeiro, uma recusa — metodológica, eu diria — de aceitar como dados ou como definitivos autores e conceitos consagrados. O fato de ter criado um conceito de sociedade, não concede, por exemplo, nenhuma eternidade a Durkheim; reciprocamente, o fato de ter sido criado por Durkheim, não faz com que o conceito de sociedade tenha que ser aceito como definitivo. Segundo, a necessidade absoluta de (re)aproximar a “etnologia indígena” da “antropologia das sociedades complexas”, reaproximação que, curiosamente, parece particularmente irritante. Provavelmente porque — além, é claro, de não respeitar os feudos institucionalmente estabelecidos — leva às últimas conseqüências a recusa do evolucionismo e do progresso cujas virtudes os antropólogos cantam, mas praticam cada vez mais raramente nessa época de sucesso de certas modalidades contemporâneas de antropologia aplicada, obrigadas, por definição, a conceder universalidade a valores, princípio e modos de pensar sempre particulares e, mais grave, dominantes.
Não há nenhum romantismo, nem nenhum democratismo, aqui. É evidente que consideramos o que fazemos mais interessante do que o que não queremos fazer. Apenas não é necessário conceder a essas preferências nenhum fundamento transcendente ou absoluto. A criação ou ativação de novas idéias e conceitos pode ser efetuada por meio de um procedimento que eu denominaria “arrebatamento” (idéias, conceitos, ou mesmo teorias, podem ser desterritorializados de seu solo original e enxertados em novos contextos, onde se articularão com distintos problemas, levantarão novas questões e apontarão outras respostas) ou por “confrontação” (quando buscamos opor a idéias, conceitos e teorias bem consagrados outras formas de pensar). Nesse último caso, o efeito de desterritorialização é obtido pela desestruturação de um território aparentemente seguro e bem protegido:

“Um sistema pontual será tão mais interessante à medida que um músico, um pintor, um escritor, um filósofo se oponha a ele, e até o fabrique para opor-se a ele, como um trampolim para saltar. A história só é feita por aqueles que se opõem à história (e não por aqueles que se inserem nela, ou mesmo a remanejam). Não é por provocação, mas porque o sistema pontual que encontraram pronto ou que eles próprios inventaram permitia essa operação” (Deleuze e Guattari 1980: 362-363).


* * *
Parecemos longe da etnografia, mas tentarei tornar tudo isso um pouco mais palpável. 
Quando fui estudar a política em Ilhéus já tendo estudado o candomblé lá mesmo, foi quase inevitável levantar a seguinte questão: serei capaz de levar a sério o que meus amigos têm a dizer não apenas sobre os orixás, mas também sobre a democracia? Porque, na verdade, tudo se passa como se fosse mais fácil ouvir o que os “informantes” têm a dizer sobre os orixás do que sobre os políticos. Por quê? Provavelmente porque como temos “certeza” que os primeiros não existem, nada do que os “crentes” dizem sobre ele pode confrontar nosso saber. Ao contrário, certos de que a democracia existe, ou ao menos pode existir, o que eles dizem tem a perigosa capacidade de nos chocar.
Assim, quando comecei a estudar política onde estudara candomblé, descobri rapidamente que agora o crédulo era eu e os céticos meus amigos. E passei a me perguntar quais poderiam ser os efeitos dessa inversão para o estudo de instituições, valores ou processos que a sociedade à qual pertence o antropólogo parece considerar centrais. Ou, em outros termos, minha questão passou a ser a possibilidade de conduzir um experimento antropológico onde tudo se passa como se os “nativos” estivessem plenamente qualificados a falar sobre a democracia. Onde, enfim, eu teria algo a aprender com eles sobre o modo de funcionamento desse sistema, assim como aprendera sobre o candomblé. No final, é claro, fiquei plenamente convencido de que meus amigos de Ilhéus são capazes de revelar aspectos do funcionamento da democracia que nós geralmente não enxergamos justamente porque com eles temos um comprometimento excessivo. O que significa, talvez, que acabei tratando meus amigos como antropólogos capazes de análises melhores, ou mais perspicazes, do que as minhas.
De novo, contudo, não há nenhum romantismo ou ingenuidade aqui. Sei perfeitamente que a condição para que aquilo que meus amigos dizem possa eventualmente receber um mínimo de atenção na academia é que eu seja capaz de “traduzir” o que dizem e fazem para uma forma aceitável — ou, pelo menos, difícil de recusar com muita rapidez — por parte de intelectuais e acadêmicos. Ou, em outras palavras, que eu seja capaz de “simetrizar” seus saberes com aqueles dominantes. Em outros termos, e a posteriori, creio ser possível dizer, hoje, que o que tentei fazer se situa — se me permitem uma imagem tentadora para quem estuda candomblé — em uma espécie de encruzilhada de quatro caminhos: a antropologia simétrica, de Bruno Latour (1991); a antropologia reversa, de Roy Wagner (1981); a antropologia reflexiva, de Marilyn Strathern (1987); a filosofia da diferença de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980).

Aqui, é crucial ter muito cuidado com o sentido em que cada um desses termos é empregado. Primeiro, simetria não significa nem justiça, nem igualdade, nem eqüidade, nem nenhum desses nobres ideais aos quais não há nada a opor, a não ser o fato de que não é disso que se trata aqui. A simetria não é sequer um princípio geral funcionando da mesma forma em todas as partes. Basta observar, por exemplo, como os “não-humanos” que Bruno Latour pretendeu colocar em rede com os “humanos” a fim de evitar os dilemas suscitados pela oposição entre natureza e cultura tendem a ser coisas ou objetos em suas famosas “redes sociotécnicas”, mas precisam ser substituídos por animais, vegetais, minerais e espíritos quando estudamos sociedades indígenas ou religiões afro-brasileiras. É bem possível mesmo que a verdadeira medida da nossa capacidade de simetrização sejam as transformações simétricas que essa operação suscita ou não, ou seja, o fato de que nossos conceitos e nosso pensamento devem se transformar simetricamente aos conceitos e pensamentos que transformam quando a eles se aplicam. Donde uma certa vantagem do termo “simetrização” sobre “simetria”. Pois o segundo pode, por vezes, sugerir a idéia de um cancelamento teórico e progressivo das diferenças, enquanto simetrização indica inequivocamente uma prática destinada a enfatizar as diferenças em seu sentido intensivo.
É curioso observar, aliás, que a posição de Latour em relação à antropologia parece vir se modificando ao longo do tempo. Assim, se em 1991, ele anunciava sua “antropologia simétrica”, em 2005, parece mais interessado em uma nova sociologia. É verdade que mesmo aí Latour (2005: 41) escreve que para que “a sociologia possa enfim se tornar tão boa quanto a antropologia”, é necessário “conceder aos membros das sociedades contemporâneas tanta flexibilidade para definir a si mesmos quanto aquela oferecida pelos etnógrafos”. Mas esta é, sobretudo, uma derradeira e aparente homenagem, que logo se converte em crítica aberta. Pois tudo indica que o que o autor deseja provar não é que sociologia seja apenas “tão boa” quanto a antropologia, mas sim melhor do que ela: “para o melhor e para o pior, e ao contrário de sua irmã a antropologia, a sociologia não se satisfez jamais com a pluralidade das metafísicas: ela tem também necessidade de abordar a questão ontológica da unidade desse mundo comum” (Latour 2005: 259). Prisioneira do que Latour denomina “culturalismo” e “exotismo”, a antropologia não seria capaz, portanto, de cruzar “esse outro Rubicão, o que conduz da metafísica à ontologia”, na medida em que reduz as metafísicas que descobre a representações, apelando para o relativismo cultural, que, no final das contas, acaba por pressupor a unidade de um mundo explicável pela ciência.
Creio que é o pequeno, mas fundamental, livro que dedicou ao tema do fetichismo, que marca bem essa espécie de transição na obre de Latour. A argumentação do livro é complexa e sofisticada e dela não reterei aqui mais do que um ponto, aquele em que o autor deixa claro que seus interesses dizem exclusivamente respeito à sua (nossa) própria sociedade: “foi somente por mim, é claro, que me interessei, ou antes, por esses infelizes brancos, os quais se quer privar de sua antropologia, encerrando-os em seu destino moderno de anti-fetichistas” (Latour 1996: 96). Latour pretende, assim, demonstrar que, como todo mundo, também o europeu “é ligeiramente superado por aquilo que construiu” (idem); que entre Pasteur e os fetichistas a diferença é apenas de grau, não de natureza, uma vez que um e outros não são nem inteiramente realistas, nem inteiramente construtivistas; que é possível afirmar tanto do ácido lático do primeiro quanto dos fetiches dos segundos que são, ao mesmo tempo, descobertos e produzidos. O único problema, do ponto de vista de um antropólogo, é que a realização desse projeto exige que Latour deixe explicitamente de lado o que os “fetichistas” têm a dizer a respeito do que fazem, concentrando-se exclusivamente em suas “práticas”.
Não é tão difícil compreender que, ao estudar cientistas, Latour tenha adotado como método uma atenção, se não exclusiva, ao menos privilegiada em suas práticas. Na medida em que tendemos a conceder à ciência o direito de definir nossa realidade, o discurso dos cientistas teria, sem dúvida, o poder de impor como pontos de vista os recortes e categorias que, ao contrário, trata-se de estudar. No entanto, não é assim que as coisas se passam quando escutamos, por exemplo, um adepto do candomblé. Seu discurso, ao contrário daquele do cientista, tende a ser considerados falso ou, em todo caso, como enunciando uma verdade que não é a nossa; nesse sentido, possui um potencial de desestabilização de nossos modos de pensar e definir o real que, creio, é dever dos antropólogos explorar. O que significa que a simetria entre a análise das práticas científicas e outras só pode ser obtida mediante a introdução de uma assimetria compensatória, destinada a corrigir uma situação assimétrica inicial. Mais, ou menos, que uma “antropologia simétrica”, trata-se, penso, de elaborar simetrizações antropológicas.

De fato, em suas conceptualizações acerca do fetiche e do fetichismo, Latour evita a análise cuidadosa das teorias nativas. Conseqüência, creio, de sua hipótese de que apenas “a unidade de um mundo comum” pode garantir a possibilidade -ou estar na base – do interesse por outras sociedades e por outros pensamentos. Assim, como o próprio Latour, não creio que as diferenças “existam para serem respeitadas, ignoradas ou subsumidas” (Latour 1996: 105-106); mas, ao contrário dele, tampouco acredito que basta defini-las como “chamariz para os sentimentos, alimento para o pensamento”. Os discursos e práticas nativos devem servir, fundamentalmente, para desestabilizar nosso pensamento (e, eventualmente, também nossos sentimentos). Desestabilização que incide sobre nossas formas dominantes de pensar, permitindo, ao mesmo tempo, novas conexões com as forças minoritárias que pululam em nós mesmos.
É essa espécie de “comunicação involuntária” e esse diferencialismo intensivo (voltarei a esses pontos no final) que tornam possível aquilo que creio constituir a característica fundamental da antropologia: o estudo das experiências humanas a partir de uma experiência pessoal (a do etnógrafo). E é por isso, também, que a alteridade constitui a noção ou a questão central da disciplina, o princípio que orienta e inflete, mas também limita, nossa prática. Parte da nossa tarefa consiste em descobrir por que aquilo que as pessoas que estudamos fazem e dizem parece-lhes, eu não diria evidente, mas coerente, conveniente, razoável. Mas a outra parte consiste em estar sempre se interrogando sobre até onde somos capazes de seguir o que elas dizem e fazem, até onde somos capazes de suportar a palavra nativa, as práticas e os saberes daqueles com quem escolhemos viver por um tempo. E, por via de conseqüência, até onde somos capazes de promover nossa própria transformação a partir dessas experiências. Em outros termos, o problema é até onde somos capazes de realmente escutar o que um “nativo”, tem a dizer, de levá-lo a sério — o que não significa, evidentemente, nem concordar com ele, nem constatar que ele concorda conosco, nem, muito menos, forçá-lo a concordar conosco (Viveiros de Castro 2002).
A única resposta, como observou o próprio Latour (2005: 48), é: “o máximo possível”; quer dizer, até sermos “postos em movimento pelos informantes”. Estes, aliás, nunca são “informantes” (termo detestável que a antropologia compartilha com a polícia), mas atores dotados de reflexividade própria, ou seja, teóricos com os quais podemos e devemos tentar dialogar e aprender. A capacidade de suportar a palavra nativa, levá-la efetivamente a sério e permitir que conduza a reflexão antropológica até seu limite, me parecem os únicos critérios de qualidade disponíveis em nossa disciplina — qualidade, é evidente, infinita e interminavelmente aperfeiçoável.
Se as dificuldades sentidas por pelo menos alguns antropólogos frente a Latour parecem derivar dessa sua “solidariedade com o ponto de vista do observador”, por meio da qual, há muito tempo, Lévi-Strauss (1954: 397) definia a sociologia em oposição à antropologia, noções como as de reversão, reflexividade e diferença intensiva podem, talvez, nos recolocar no caminho de uma verdadeira antropologia. Ou seja, daquela que acredita que o valor do diálogo com outras formas de pensar e viver deve se apoiar justamente naquilo que estas têm de diferente, não na hipótese, implícita ou explícita, de que apenas “a unidade de um mundo comum” pode garantir a possibilidade ou estar na base do interesse por outras sociedades e por outros pensamentos. Creio que é apenas a exploração sistemática e infinita dessas diferenças que pode alimentar a esperança de compreender melhor os fenômenos que estudamos e, simultaneamente, tornar mais interessante sua utilização “iluminadora” sobre nós mesmos, estabelecendo conexões mais ricas do que aquelas a que nos limitamos quando apelamos para a necessidade de um “mundo em comum”. Mas não se trata, é claro, de simplesmente trocar a frigideira das visões ocidentais pelo fogo da perspectiva nativa. Trata-se, ao contrário, e se é que a entendo bem, de seguir uma proposta lançada por Marilyn Strathern (1996: 521): 

 “ao antropologizar alguns desses temas (…) não estou apelando para outras realidades culturais simplesmente porque quero negar o poder dos conceitos euro-americanos (…). O ponto é estendê-los com imaginação social. O que implica perceber como são postos para funcionar em seu contexto indígena e, ao mesmo tempo, como poderiam funcionar em um contexto exógeno”.

É nesse sentido que na noção de “reversão”, tal qual proposta por Roy Wagner, não devemos buscar simplesmente o fato absolutamente banal de que os nativos podem fazer a antropologia de nós mesmos. Devemos perseguir a idéia de que essa inversão — evidentemente imaginada por nós — pode nos tornar capazes de desmontar e remontar os mecanismos essenciais de nossa antropologia por meio do que os nativos dizem de nós. Em outros termos, a “reversão” wagneriana deve ser compreendida, também e principalmente, no sentido em que é empregada na chamada “engenharia reversa”.
“Reflexividade”, por sua vez, não significa nem “recursividade” (do tipo “antropologia da antropologia”), nem modo de objetivação (à la Lévi-Strauss ou Bourdieu), nem meio de subjetivação (como no pós-modernismo). Essa modalidade de “reflexividade” está ligada a um dialogismo radical, nem platônico nem dialético, antevisto por Pierre Clastres (1968) e elaborado por Marilyn Strathern na seqüência de Roy Wagner. Ela é, sobretudo, de ordem etnográfica e depende de uma abertura para a palavra nativa, do reconhecimento da resistência que esta nos impõe — e não da resistência que a ela impomos. Trata-se de explorar o sentido acústico de reflexividade — “um som se reflete de corpo que vibra a corpo que vibra” (Pignarre e Stengers 2005: 178) —, não seu sentido óptico. Ou, nesse caso, reconhecer que, como escreveu Jean Cocteau, “os espelhos deveriam refletir um pouco, antes de devolver as imagens”.
É por isso que o antropólogo não pode ser nem o cientista cujas teorias transcendem a experiência que decidiu partilhar, nem apenas mais um narrador a acrescentar seu relato a todos os demais. “Teorias etnográficas”, como as batizou, de modo algo paradoxal, Malinowski (1935), eis o que fazemos. Em termos mais contemporâneos, talvez fosse possível dizer que tudo a que o etnógrafo pode aspirar — mas isso não é pouca coisa — é estabelecer com os nativos uma dessas “conexões parciais” de que nos fala Strathern (2005): “mais do que um e menos do que dois”, eles passam a constituir um ciborgue, no sentido que Donna Haraway (1991) deu ao termo. Seremos capazes de dizer algo diferente dos nativos sem nos metermos a dizer algo a mais que eles? Não se trata, então, nem de apenas repetir os conceitos nativos, nem de suprimi-los em benefício dos nossos, nem de projetar os nossos sobre os deles. O único problema verdadeiro é o alinhamento conceitual entre diferentes modos de pensar, o que permite, por um lado, clarear as questões (sem pretender “esclarecer” nada nem, sobretudo, ninguém) e, por outro, as transformações de nosso próprio pensamento. Trata-se de usar os conceitos de forma propriamente conceitual, ou seja, não tipológica. Não como categorias dentro das quais algumas coisas entrariam e outras não, mas como modos de organização e formas de criação. A única particularidade do antropólogo diante do filósofo é que ele escolheu começar com os conceitos dos outros e, só depois, articulá-los ou alinhá-los de algum modo com os seus — mas isso, claro, faz toda a diferença do mundo
Se há algo a afastar, é a fantasia intelectual da “crença”. Como escreveu Wagner (1981: 30), “uma antropologia que se recusa a aceitar a universalidade da mediação, que reduz o significado a crenças, dogma e certezas, será empurrada para a armadilha de ter de acreditar ou nos significados nativos, ou nos nossos próprios”. Não é de crença que se trata, mas de experiência, conceitos e teorias. A particularidade do antropólogo, como sustentou Jeanne Favret-Saada (1990), é sua disposição e capacidade de “ser afetado” por outras experiências. O que não significa, claro, que os afetos envolvidos sejam os mesmos no antropólogo e nos nativos, mas apenas que, por estarem todos “afetados”, cria-se uma situação de “comunicação involuntária” entre eles, o que constitui a condição de possibilidade do trabalho de campo e da etnografia.
Chegamos aqui ao quarto caminho que compõe a encruzilhada da antropologia pós-social — a filosofia de Deleuze e Guattari. Porque não se trata de sustentar nenhum tipo de posição “relativista”, enaltecendo as virtudes das chamadas diferenças culturais. O relativismo, hoje, é mais um desses remédios que perderam seu prazo de validade, funcionando como obstáculo para a elaboração de uma antropologia efetivamente alternativa. Dele poder-se-ia dizer o que Lévi-Strauss (1973: 385) escreveu do evolucionismo: “trata-se de uma tentativa de suprimir a diversidade das culturas fingindo reconhecê-las plenamente”.
Uma perspectiva apoiada na noção de multiplicidade intensiva — aquela que não é nem o múltiplo do uno, nem o oposto da unidade, mas rizoma e singularidade — deve começar reconhecendo a dificuldade em estabelecer o ponto exato onde passam as “fronteiras” entre as “culturas” que “diferem”. Fronteiras certamente existem, mas são sinuosas e incertas. Assim, e por exemplo, o perspectivismo de Nietzsche pode estar mais próximo do perspectivismo ameríndio do que do kantiano. As diferenças cortam os coletivos por dentro tanto quanto por fora e é isso, penso, que faz com que o relativismo ocidental, com o pluralismo que o acompanha, seja sempre acompanhado de uma certeza, desejo ou insinuação de que existe, para falar como Paul Veyne (1978: 23), um “geometral” que sintetizaria todas as perspectivas parciais; um “julgamento de Deus”, que superaria e deteria todos os juízos particulares.Deleuze e Guattari (1980: 536-537), escreveram que “a história somente traduz em sucessão uma coexistência de devires” e que “tudo coexiste, em perpétua interação”. Se reconhecermos a validade desse princípio também para o eixo espacial, seremos capazes talvez de passar do “ou” do culturalismo” básico da antropologia para o “e” dos devires; de passar, como sugeriu Guattari (1990: 27-28) das teorias sobre o que é para as etnografias do “em vias de”.