Heitor Frúgoli Jr.
USP
Um roteiro etnográfico realizado por um coletivo que compartilhe olhares e impressões é algo que não se confunde, evidentemente, com a prática etnográfica, embora se aproxime de aspectos da mesma ao mapear situações, eventos ou lugares que suscitem interrogações instigantes – mesmo que tal exercício possa constituir, para alguns, apenas um fim em si mesmo.
Essa foi uma das idéias básicas que inicialmente levou professores e estudantes de pós-graduação e graduação interessados em pesquisa sobre temas urbanos a um roteiro pelo bairro da Luz, durante uma manhã e parte da tarde de um sábado (18/8/2007), seguido de um debate a respeito da experiência. A transformação de nossas observações em falas mais elaboradas e partilhadas – para além daquelas mais parciais e fragmentadas, trocadas ao longo do próprio trajeto exploratório – permitiu que nossas andanças e observações se tornassem uma espécie de workshop.
Tal prática nasceu de uma pesquisa em andamento que coordeno (e da qual fazem parte integrantes do Grupo de Estudos de Antropologia da Cidade – GEAC, cujo enfoque etnográfico privilegiado tem sido a Luz, tendo como contraponto comparativo o Bairro Alto, em Lisboa. Tal experimento integra um conjunto de investigações em curso ligadas ao projeto “Cidades, Patrimônio e Consumo Cultural em Perspectiva Comparada”, realizadas por pesquisadores ligados à Rede Brasil-Portugal de Estudos Urbanos, criada no ano passado no âmbito do Programa de Cooperação em Matéria de Ciências Sociais para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e amparada pelo CNPq.
Decorre desse arranjo institucional uma outra motivação para a realização de tal workshop: o enfrentamento da dimensão comparativa de nossas pesquisas, dado que envolvem uma abordagem de maior duração num contexto urbano do próprio país e outra, de curta duração, em uma cidade do além-mar (portuguesa em nosso caso, brasileira no dos pesquisadores portugueses). Assim, revela-se outra dimensão de nossa troca de olhares – na presente circunstância, o “mais distanciado”, de um português (participante da rede e da experiência em questão), em contraponto aos “mais próximos”, dos brasileiros, mesmo que tais graus de alteridade entre observador e realidade observada possam ser alvos de relativizações.
Dessa forma, fizeram parte de nossa exploração e posterior debate – mencionando aqui apenas os que estiveram presentes em todas as etapas do mesmo – os professores Claudino Ferreira (Universidade de Coimbra), Silvana Rubino (UNICAMP) (ambos ligados à rede acima mencionada) e José Guilherme Magnani (USP, convidado), além dos pesquisadores Marco Henrique Zambello (doutorando em História/UNICAMP), Jessie Sklair Corrêa e Carlos Roberto Filadelfo de Aquino (mestrandos em Antropologia Social/USP), Paula Delage Faria e Laís Silveira (graduandas em Ciências Sociais/USP), os quatro últimos ligados ao GEAC.
Com base num trinômio que interessa de forma especial aos pesquisadores da rede – “preservação do patrimônio”, “consumo cultural” (nos termos cunhados por Bourdieu, e a merecer um tratamento mais antropológico) e “uso histórico do espaço pelas camadas populares” (com ênfase no tema da moradia) –, o bairro da Luz, situado na região central de São Paulo, constitui à primeira vista um sítio de particular importância para a análise da confluência de tais temáticas (sem excluir outros tópicos relevantes). Isso porque é marcado pela presença de vários prédios e instituições culturais tombadas pelo patrimônio estadual e municipal, cujo marco histórico inicial foi a Estação da Luz – construída pelos ingleses no final do séc. XIX e que passou por reforma recente, com a implantação, em suas dependências, do Museu da Língua Portuguesa; em torno da mesma, um conjunto significativo de instituições culturais foi recentemente reabilitado, como o prédio da Pinacoteca do Estado (situada no Parque da Luz), ou em parte reutilizado, como no caso da estação Júlio Prestes, com a criação da Sala São Paulo, hoje sede da Orquestra Sinfônica do Estado. Tais instituições fazem parte de uma política em curso desde a década de 1980, com razoável continuidade, voltada à transformação da Luz num “bairro cultural”, o que tem acarretado, a princípio, todo um novo afluxo de integrantes das classes médias e altas à região para práticas de consumo cultural nas instituições já mencionadas. As casas, ruas e praças de tal região, entretanto, vêm sendo por muitas décadas definidas por considerável ocupação popular, com uma quantidade significativa de cortiços, bem como práticas recorrentes de comércio informal, prostituição e tráfico e consumo de crack em vários espaços públicos. Nos últimos anos, um projeto da atual prefeitura – intitulado “Nova Luz” – tem acarretado uma série de intervenções de repressão, controle e expulsão de tais grupos – tal como a “Operação Limpa”, havida em 2005 –, buscando preparar o terreno para a consolidação de processos de “requalificação urbana”, incluindo a demolição, em curso, de alguns quarteirões do bairro para tal fim.
Esse é, de certo modo, o pano de fundo contextual que norteou nossas observações, cujo trajeto, na escala do andar, começou na Estação da Luz, seguindo para o Parque da Luz e a Pinacoteca do Estado, a “Estação” Pinacoteca (hoje local de exposições, onde funcionou, na época da ditadura militar, o Departamento de Ordem Política e Social – DOPS), a Estação Júlio Prestes (onde não foi possível visitar a Sala São Paulo, aberta ao público apenas em horários especiais), as ruas comerciais da Santa Ifigênia e entorno e, finalmente, a visita a uma ocupação de um edifício na Rua Mauá, organizada por três movimentos de luta pela moradia (tema que vem sendo etnografado por Carlos Filadelfo de Aquino, ligado ao GEAC). Ao longo dessas caminhadas, abrimo-nos para a observação das mais variadas situações e cenários, como o uso do espaço pelas prostitutas no Parque da Luz, o imponente edifício de mais de 20 andares e forte ocupação popular, próximo à “Estação” Pinacoteca, a população de rua da Praça Júlio Prestes, o uso significativo das calçadas e ruas por parte daqueles envolvidos de algum modo com as redes de comércio da região da Santa Ifigênia e os edifícios com entradas emparedadas pelo poder público durante as ações de repressão da “Operação Limpa”. Em nosso debate, atenção especial foi dada à ocupação da Rua Mauá, dada a densidade de relações e observações ali estabelecidas (ver crianças que povoam seus corredores e pátios.
Não cabem – nem seria possível reproduzir neste breve texto – os principais tópicos de nosso pequeno colóquio, algo de que só um texto coletivo ou “polifônico” poderia dar conta. De toda forma, são reflexões que em breve podem vir a estar presentes em partes, fragmentos ou mesmo no “espírito” dos futuros textos produzidos pelos participantes dessa vivência (sobretudo os pesquisadores envolvidos com o projeto mencionado e em andamento). Do meu ponto de vista, e creio que outros partilham do mesmo, foi uma experiência proveitosa quanto a uma breve prática e discussão sobre uma série de desafios presentes nas pesquisas urbanas. Tempos depois, foi a vez de participantes do GEAC (Jessie Sklair Corrêa, Marina Aparecida Capusso e eu) empreenderem conjuntamente uma investigação de curta duração no Bairro Alto, em Lisboa, e posteriormente compartilharem-na num pequeno encontro com pesquisadores portugueses em Coimbra, numa espécie de reedição, em caráter parcial, da experiência aqui havida, desta vez lá. Isso reiterou, pelo retorno obtido, a possibilidade de incorporar tal troca de olhares como uma dimensão constitutiva de certas práticas etnográficas.
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