Selvagens, desajustados?
Quando a imprensa noticia certo tipo de ocorrência, geralmente envolvendo grupos de jovens ou adolescentes –enfrentamentos entre bandos rivais, comportamento em shows e festivais, pichações etc.– inevitavelmente aparece o termo «tribos urbanas» no box explicativo que acompanha a matéria.

Com essa referência o que se pretende é introduzir algum princípio de ordenamento num universo que se caracteriza exatamente por sua fragmentação e singularidade. Analisando mais de perto essa tentativa de explicação, percebe-se que na maioria das vezes o caráter das transgressões identificado em tais manifestações não extrapola um limiar até certo ponto previsto e tolerado como característico de determinada faixa etária. Quando os efeitos de tais práticas vão além desse limiar, muda o enfoque: está-se no âmbito da delinqüência, do banditismo, da violência urbana.

Algumas dessas ocorrências, contudo, oscilam entre as fronteiras do tolerado e do francamente reprovado: é o caso das pichações, que introduzem uma tensão entre a natureza de seus protagonistas («adolescentes em fase de auto-afirmação») e os danos que suas intervenções produzem no patrimônio público ou privado. Fica-se na dúvida entre acionar os policiais da Secretaria de Segurança, os psicólogos da Saúde ou os teóricos da Secretaria da Cultura. Um pouco «selvagens» demais, os integrantes dessa tribo…

Este quadro mostra, entre outras coisas, a ambigüidade do uso do termo «tribos urbanas» em seu uso corriqueiro, tal como aparece no senso comum e na mídia. Que dizer, então, de seu emprego em pesquisas e trabalhos ditos científicos?

Metáfora ou categoria

A primeira observação é: quando se fala em «tribos urbanas» é preciso não esquecer que na realidade está-se usando uma metáfora, não uma categoria. E a diferença é que enquanto aquela é tomada de outro domínio, e empregada em sua totalidade, categoria é construída para recortar, descrever e explicar algum fenômeno a partir de um esquema conceitual previamente escolhido. Pode até vir emprestada de outra área, mas neste caso deverá passar por um processo de reconstrução.

A metáfora, não: traz consigo a denotação e todas as conotações distintivas de seu uso inicial. Por algum desses traços é que foi escolhida, tornando-se metáfora exatamente nessa transposição: o significado original é aplicado a um novo campo. A vantagem que oferece é poder delimitar um problema para o qual ainda não se tem um enquadramento. É usada no lugar de algo, substitui-o, dá-lhe um nome. Evoca o contexto original, em vez de estabelecer distinções claras e precisas no contexto presente. O problema, contudo, que acarreta é que dá a impressão de descrever, de forma total e acabada, o fenômeno que se quer estudar, aceitando-se como dado exatamente aquilo que é preciso explicar. Para apreciar devidamente os limites e alcances de seu emprego, é preciso antes de mais nada ter presente qual é o domínio, o sistema de significações de onde foi tirada.

E qual é o domínio original de «tribo»? A etnologia e, nela, uma forma de organização de sociedades que constituíram o primeiro e mais significativo objeto de estudo da antropologia.

Não deixa de ser sintomático o fato de se tomar emprestado um termo usual no estudo das sociedades de pequena escala para descrever fenômenos que ocorrem em sociedades contemporâneas altamente urbanizadas e densamente povoadas. O recurso parece deslocado mas é exatamente isso que se quer com o uso de metáforas: um de seus efeitos é projetar luz de forma contrastante sobre aquilo que se pretende explicar.

Para poder avaliar até que ponto esse termo ajuda a entender tais fenômenos, nas sociedades modernas, é preciso inicialmente descobrir os significados que ele tem no campo em que é manejado como termo técnico, nas sociedades indígenas. O segundo passo é identificar que relação existe entre o recorte original e aquele que se produz com a utilização no novo contexto.

Sem entrar em detalhes e controvérsias que não cabem nos limites e propósito deste artigo, pode-se dizer que tribo constitui uma forma de organização mais ampla que vai além das divisões de clã ou linhagem de um lado e da aldeia, de outro. Trata-se de um pacto que aciona lealdades para além dos particularismos de grupos domésticos e locais

E o que é que vem à mente quando se fala em «tribos urbanas»? Exatamente o contrário dessa acepção: pensa-se logo em pequenos grupos bem delimitados, com regras e costumes particulares em contraste com o caráter homogêneo e massificado que comumente se atribui ao estilo de vida das grandes cidades. Não deixa de ser paradoxal o uso de um termo para conotar exatamente o contrário daquilo que seu emprego técnico denota: no contexto das sociedades indígenas «tribo» aponta para alianças mais amplas; nas sociedades urbano-industriais evoca particularismos, estabelece pequenos recortes, exibe símbolos e marcas de uso e significado restritos.

Por isso é que não se pode tomar um termo de um contexto e usá-lo em outro, sem mais – ou ao menos sem ter presente as reduções que tal transposição acarreta. Como categoria, tribo quer dizer uma coisa; enquanto metáfora, é forçada a dizer outras, até mesmo contra aquele sentido original. Sendo metáfora, «tribo» evoca, mais do que recorta. E evoca o quê? Primitivo, selvagem, natural, comunitário – características que se supõe estarem associadas, acertadamente ou não, ao modo de vida de povos que apresentam, num certo nível, a organização tribal. O fato de substituir a precisão do significado original por imagens associadas de forma livre (e algumas delas incorretamente) é que dá ao termo «tribo» seu poder evocativo, permitindo-lhe designar realidades e situações bastante heterogêneas.

Usos e abusos

Esta liberdade que a metáfora possibilita não a desqualifica em contextos de pesquisa e análise; exige, contudo, que se tenha presente que seu emprego não é unívoco e que se tomem os cuidados correspondentes, sob pena de, aí sim, torná-la equívoca. Sem esse exercício prévio corre-se o risco de iniciar o trabalho na base de uma convenção do tipo: todos sabem do que se está falando, quando na realidade cada qual lê o termo em questão (no caso tribo) com um significado diferente. E na maioria das vezes, segundo o senso comum mais rastaqüera.

A seguir, rapidamente, alguns significados de seu emprego em textos a respeito da cidade e seus personagens.

Um primeiro significado, mais geral, de tribo urbana, tem como referente determinada escala que serve para designar uma tendência oposta ao gigantismo das instituições e do Estado nas sociedades modernas: diante da impessoalidade e anonimato destas últimas, tribo permitiria agrupar os iguais, possibilitando-lhes intensas vivências comuns, o estabelecimento de laços pessoais e lealdades, a criação de códigos de comunicação e comportamento particulares.

Em outros contexto, tribo evoca o «primitivo» e designa pequenos grupos concretos com ênfase não já em seu tamanho, mas nos elementos que seus integrantes usam para estabelecer diferenças com o comportamento «normal»: os cortes de cabelo e tatuagens de punks, carecas, a cor da roupa dos darks e assim por diante.

Quando evoca o «selvagem», o termo designa principalmente o comportamento agressivo, contestatário e «anti-social» desses grupos e as práticas de vandalismo e violência atribuídas a outros como as gangues de pichadores, as torcidas organizadas.

Grandes concentrações – concertos de rock em estádios, shows e outras manifestações (envolvendo ou não consumo de drogas ou comportamentos coletivos tidos como irracionais) ensejam também o emprego de «tribos urbanas». Neste caso o que se evoca é algo confusamente imaginado como «cerimônias primitivas totêmicas». E assim por diante.

Por último é preciso ainda levar em conta que até mesmo a particular idéia que vê na tribo indígena uma comunidade homogênea de trabalho, consumo, reprodução e vivências através de mitos e ritos coletivos, não se aplica às chamadas «tribos urbanas»: sob esta denominação costuma-se designar grupos cujos integrantes vivem simultânea ou alternadamente muitas realidades e papéis, assumindo sua tribo apenas em determinados períodos ou lugares.

É o caso, por exemplo, do rapper que oito horas por dia é office-boy; do vestibulando que nos fins de semana é rockabilly; do bancário que só após o expediente é clubber; do universitário que à noite é gótico; do secundarista que nas madrugadas é pichador, e assim por diante.

Concluindo

Uma análise das utilizações mais freqüentes da expressão «tribos urbanas» mostra que na maioria dos casos não se vai além do nível da metáfora. Assim, esse termo – a menos que seja empregado após um trabalho prévio com o propósito de definir seu sentido e alcance – não é adequado para designar, de forma unívoca e consistente, nenhum grupo ou comportamento no contexto das práticas urbanas. Pode constituir um ponto de partida mas não de chegada, pois não constitui um instrumento capaz de descrever, classificar e explicar as realidades que comumente abrange.

Ao invés de tentar reduzir os múltiplos grupos e práticas a um suposto denominador comum, mais proveitoso seria explorar sua diversidade na paisagem urbana, procurando determinar as relações que estabelecem entre si e com outras instâncias da vida social.

Uma possível estratégia de pesquisa poderia, por exemplo, começar por um primeiro recorte, o da faixa etária, para ficar no universo de jovens e adolescentes.

O passo seguinte seria escolher como eixo da análise uma (ou várias) das facetas normalmente presentes na constituição e dinâmica desses grupos: o estabelecimento de laços de sociabilidade, a ênfase nos ritos de passagem, a presença de códigos de diferenciação, as formas de uso e apropriação do espaço urbano, as modalidades preferidas de entretenimento e lazer, etc. Um levantamento etnográfico encarregar-se-ia de mostrar a forma concreta e distintiva que cada grupo – ou aquele escolhido como objeto da pesquisa – dá a alguma dessas práticas.

Aí, sim, até que se poderia fazer referência às sociedades tribais pois nelas, assim como em outras formas de organização social, existe um cuidado especial com aqueles momentos em que membros de conjuntos etários em tempos de iniciação exercitam-se aprendendo, contestando ou pondo à prova a consistência das relações sociais que logo terão que assumir – passado o período da liminaridade – já então revestidos de um novo status.