Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo
Introdução
Durante a sessão de defesa de minha tese de doutorado sobre as festas brasileiras, defendida em 1998, um dos aspectos mais notados e comentados com grande curiosidade pela banca foi o uso que fiz de dados coletados em fontes da Internet e de conversas e entrevistas realizadas em chats (conversas por computador, em tempo real) com a finalidade de atualizar as informações sobre as festas que estudei nas cinco diferentes regiões do país. Não se questionava a validade ou não do uso destas fontes, que a todos pareceu legítimo, mas compreender mais profundamente de que modo se insere um antropólogo no “campo” virtual, onde categorias básicas do entendimento humano como tempo, espaço, corpo etc, encontram-se “deslocadas” e as pessoas estão, de certa maneira, “homogeneizadas” em sua presença na tela do monitor do computador. Por esta razão, apresento neste artigo algumas idéias e informações sobre as condições de pesquisa utilizando computadores e a rede Internet.
Se muitos antropólogos ainda não consideram o computador como um instrumento de pesquisa, a maior parte de nossa “tribo” já utiliza com familiaridade seu computador pessoal como processador de texto e boa parte dela também como via de acesso à Internet para enviar mensagens eletrônicas (e-mails) para os colegas . Tem-se deixado, entretanto, de explorar os recursos do computador como instrumento de pesquisas, e não apenas para a organização e análise estatística dos dados que recolhemos em campo (quando dominamos a operacionalização dos programas -softwares- indicados para estas finalidades). O que pretendo levantar como tema de discussão aqui é o fato de que, devido à imensa versatilidade advinda não apenas da simplificação do uso dos programas, mas também das novas facilidades de acesso à rede Internet, os computadores podem e devem ser usados efetivamente para a realização de pesquisas qualitativas pelos cientistas sociais.
O reconhecimento da pesquisa qualitativa como uma atividade sistemática e o desenvolvimento de programas de pesquisa interdisciplinares têm chamado a atenção de alguns acadêmicos (especialmente norte-americanos, para os quais o acesso à tecnologia informática se deu bem mais cedo e certamente com custos muito menores), para o uso do computador como um auxiliar também nas pesquisas na área de antropologia e em sua publicação, especialmente nos últimos dez anos, com a expansão e popularização do acesso à Internet (Anderson, 1990; Bernard, 1994; Chesebro, 1989; Hudson, 1990; Jones, 1995) O tipo de dados (qualitativos) nos quais um pesquisador pode estar interessado (textos, falas, música, filmes, fotografias e outros tipos de comunicação) vêm se tornando cada vez mais digitalizáveis e, desse modo, passíveis de serem transmitidos via modem entre computadores, ou postados e capturados na rede Internet. Com isso, os computadores podem transformar, em alguns sentidos, o modo pelo qual a pesquisa qualitativa vem sendo feita e, até mesmo, sugerir novas pesquisas sobre o próprio uso da Internet como fonte de dados ou como espaço de relacionamento entre grupos.
A partir de minha experiência de pesquisa foi possível constatar que o uso do computador e da rede Internet pode ajudar a solucionar alguns dos problemas práticos durante as várias fases de uma pesquisa: desde a coleta de dados até a apresentação. Pode-se discutir se o uso do computador é possível na fase de análise, a mais árdua delas. Não creio que possa responder a esta questão neste artigo, uma vez que em minha pesquisa, esta fase não se fez, de fato, com o uso do computador, o que também não significa, segundo entendo, que não possa ser feito. É possível, por exemplo, pensar na utilidade da discussão de nossas conclusões com pesquisadores diversos via e-mail ou chat. Deixo em suspenso, portanto, esta discussão. Em outras fases da pesquisa, contudo, o uso do computador pode ser de grande ajuda e não deve ser desprezado.
A Internet como fonte de dados
Um dos primeiros usos da rede Internet numa pesquisa antropológica pode ser feito já durante a elaboração de um projeto de pesquisa. Se o pesquisador tem uma investigação em mente, ele pode usar a rede para consultar as várias bibliotecas do mundo e verificar o que existe sobre seu tema de pesquisa. Em algumas bibliotecas é possível solicitar o envio de cópias pelo correio, debitando-se seu custo no cartão de crédito internacional. Em outras pode-se simplesmente transferir, via modem, para o computador pessoal, o arquivo que se encontra compactado e disponível nas bibliotecas para isso. Tendo transferido para seu próprio computador o arquivo desejado (que pode ser uma tese, um livro, a digitalização de um quadro, um mapa antigo, músicas, depoimentos etc), basta descompactá-lo (os arquivos são comprimidos para tornar sua transferência via modem mais rápida) e imprimi-lo, poupando meses, até, na busca e aquisição de um texto ou qualquer outro dado. Alguns sites de instituições, como o do Projeto Gutemberg, o WebMuseum e alguns sites universitários, também mantêm vários textos e digitalizações das imagens disponíveis para download.
O que faz do computador uma ferramenta importante para o pesquisador é principalmente sua capacidade de rearranjos constantes: os únicos limites são dados pelas características da máquina e dos acessórios que ela possui (hardware) e, mesmo assim, pode-se sempre fazer melhorias (upgrades) num computador, sem precisar substituí-lo, além de acrescentar novos acessórios e aumentar a capacidade de armazenamento de dados sempre que necessário. Várias novas funções dos computadores estão sendo popularizadas (gravação de sons digitais, imagens, captação de programas de televisão, etc.) e seu papel na pesquisa vem se tornando menos o de uma máquina de escrever sofisticada ou de uma calculadora e bem mais o de um ativo assistente de pesquisa.
O pouco uso que pesquisadores da área de ciências humanas vêm fazendo do computador e da Internet como meio de acesso a fontes de dados talvez se deva ao fato de que até bem recentemente não havia meios suficientes (e simples) de localizar e coletar (transportar) os dados. Com o desenvolvimento da rede Internet o número de bancos de dados vem aumentando rapidamente e hoje em dia dificilmente se pensa num tema sobre o qual não haja dados disponíveis de alguma forma, por via telefônica, na Net. Existem páginas e páginas (sites) sobre qualquer tema, sem falar nas facilidades oferecidas pelos jornais eletrônicos (do Times ao Le Monde, da Folha de São Paulo ao Diário de Borborema), livros sagrados digitalizados, livros-arquivos para serem copiados e impressos, poesia, literatura, museus com obras de artistas do mundo todo, dados de órgãos governamentais, sites de letras clássicas, mitologias, universidades etc. Todo tipo de informação está acessível na Net ou através dela. Entidades financiadoras como a FAPESP, o CNPq, a Ford Foundation, além de várias outras instituições, disponibilizam informações, dados, e até mesmo os formulários para download e impressão em nossa impressora, em casa, poupando tempo e dinheiro em questões burocráticas.
Não se pode fugir, pelo menos enquanto não entra em funcionamento a Internet II (de exclusivo uso acadêmico) à chateação (para o antropólogo, mas não, por exemplo, para o publicitário) de ter que passar por páginas comerciais, experiências multimídia e outras que tomam nosso tempo quando estamos em busca de algum dado específico. Estas páginas são compostas em geral de fotos trabalhadas ou com interferências criativas, e não de fotos documentais, das coisas “como elas são”. Mas podem constituir excelente material de pesquisa em antropologia visual, fotografia, semiótica e outras.
Uma vez que os dados estão digitalizados e capturados, o computador pode ser usado também para percorrê-los, reduzi-los, extraí-los, administrá-los, analisá-los e revelar sentidos, padrões. Alguns pesquisadores americanos começaram mesmo a desenvolver um corpus de conhecimento e softwares na última década. Já existem programas que podem realizar algumas das tarefas “braçais” da pesquisa de certos aspectos da cultura, como etnolinguística, etnomatemática, etnobotânica etc., que exigem classificações, contagens, acesso a fichas etc. E ainda, como a pesquisa qualitativa tem necessidades especiais, e mesmo considerando o pequeno mercado, já existem pelo menos dois programas especialmente desenvolvidos para responder a estas necessidades relacionadas à administração de dados das pesquisas de campo. Estes programas apesar de já um pouco antigos são pouco conhecidos no Brasil e, devido ao fato de que os antropólogos constituem um grupo muitíssimo menor do que o das áreas de exatas e biológicas, programas como Etnograph e Kwalitan, até onde pude saber, têm muito menos suporte (assistência operacional), menos documentação, pouca atenção para o feedback do usuário, interfaces (modo de operação, na tela) pobres e maiores períodos sem atualizações do que programas como, digamos, os browsers (páginadores– programas de acesso à Internet). Eles em geral são escritos por pesquisadores solitários e não por equipes de programadores profissionais e, assim, tendem a ser infestados de bugs (problemas de programação), incompatibilidades e necessidade de aperfeiçoamento.
Nos textos postados na Usenet , nos BBSs, nas listas de discussão e a WWW (World Wide Web ), um pesquisador interessado em coletar dados e opiniões sobre assuntos específicos não encontrará grandes dificuldades. Os mecanismos de busca como Google, Yahoo, Altavista,Lycos, Cadê?, entre centenas de outros, tornam possível, por exemplo, encontrar todas as mensagens sobre certos assuntos (folclore, ateísmo, doenças, esoterismos, religiões, negócios, política e milhares de outros) que foram trocadas nas redes de mensagens nos últimos dias. Um dos problemas a serem enfrentados, entretanto, é o de que muitos destes dados textuais são efêmeros. Nem todos eles são arquivados pelos provedores e, assim, o pesquisador pode coletar tudo que foi escrito sobre um determinado período em que está acompanhando uma lista de discussão sobre homossexualismo, por exemplo, mas é quase certo que não poderá ver como as atitudes a respeito deste tema especifico mudaram em alguns anos.
Outra situação comum é as pessoas (especialistas ou não) criarem sites com seus próprios textos e informações na Net e que desaparecem quando o site muda de endereço (URL ), quando o provedor fecha ou o responsável pelo site simplesmente não quer mais pagar a hospedagem de suas páginas ou mesmo já não deseja mais mantê-la. Quem acessa a Internet freqüentemente conhece o famoso “Error 404- File Not. Found”, que indica que alguma página que anteriormente se encontrava ali já não pode ser encontrada. A armazenagem de dados para a infinidade de material postado na Net (bilhões de palavras aparecem nas mais de cinco mil listas de discussão da Usenet por dia), apesar de não ser cara, não é gratuita, e o custo para arquivar tudo isso seria astronômico. Em qualquer caso, quem começa uma pesquisa procurando dados na Internet deve saber que eles devem ser garimpados com a mesma paciência de quem procura no sebo os livros “certos”.
Todas estas vias podem ser utilizadas, portanto, para verificar a existência de dados, a pertinência de um problema proposto pela pesquisa, para contatar informantes e outros pesquisadores etc. Em minha pesquisa sobre festas no Brasil, utilizando estes recursos encontrei centenas de sites brasileiros sobre festas locais e de outros países, produzidos pelos próprios “festeiros”, com dados qualitativos, quantitativos, fotos (que pude inclusive usar em minha tese depois de pedir autorização, via e-mail, aos webmasters responsáveis) e sons, dados governamentais como os da Embratur e seus projetos de incentivo ao turismo através das festas e outros sites, menos significativos, administrados por empresas de turismo que contudo, em conjunto, também constituíam um dado importante. Havia ainda sites europeus sobre folclore e temas afins. Livrarias online como a Booknet, brasileira, e a Amazon.comajudaram a conseguir livros difíceis de encontrar em São Paulo e/ou Brasil, a preços vantajosos, entregues em casa, com pagamento através de cartão de crédito. Até mesmo sebos puderam ser consultados online, como o Sebo Brandão, ao qual se pode consultar via e-mail sobre a existência ou não de um dado livro em seu estoque e, se houver e o preço interessar, solicitar o envio a qualquer parte do Brasil ou do mundo. Gallimard, Barnies e outras importantes livrarias internacionais também mantém seus sites de venda online com catálogos atualizados constantemente. Existem, ainda, inúmeros Dicionários e Enciclopédias Online, que podem fornecer dados de várias espécies.
Todos estes recursos são bastante úteis durante a elaboração e realização de um projeto de pesquisa e poupam tempo e dinheiro do pesquisador e da pesquisa. E embora existam poucos sites efetivamente dedicados à Antropologia, já se discute este potencial, nos meios acadêmicos internacionais:
There are notably no established electronic journals, ethnographic databases, photographic archives, or on-line courses or textbooks. Major institutions, including the AAA and the HRAF, seem to be unaware of the new possibilities for scholarly communication. This situation may be temporary, and we may be on the verge of an explosion of Internet development. However, several barriers confront future development. These include the problems of obtaining training and achieving proficiency in new skills, gaining and ensuring access to new resources, and assigning and protecting academic credit for new publication forms
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