Mariza Peirano
UnB
Inicio com uma constatação elementar – a de que conceitos acadêmicos, assim como outras idéias da nossa experiência, mudam no tempo e no espaço, isto é, são históricos e são contextuais. Nenhum conceito tem um significado perene e, especialmente, nas ciências sociais, a vida dos conceitos reflete o que Max Weber definiu como sua “eterna juventude”. Para Weber, essa era uma característica positiva das ciências sociais e refletia um otimismo raro nele – o de que, por definição, essas ciências seriam sempre jovens, sempre em processo de elaboração e sofisticação, sempre renovadas.
A etnografia, antes
Dessa perspectiva da “eterna juventude”, não é surpresa verificar que a idéia do que seja etnografia tenha uma história longa e freqüentemente espiralada, ou pendular – modificamos nossa concepção de etnografia, muitas vezes para voltar, revigorados, a um ponto familiar. Como em outros momentos na antropologia, devemos a Malinowski uma perspectiva que propunha e defendia a etnografia quando definiu a apresentação do kula como “interna”, “etnográfica”, isto é, em consonância com a prática e a perspectiva dos trobriandeses. Malinowski evitava uma descrição que chamou de “sociológica”, resultado de uma observação “do lado de fora” – ele a considerava importante, sim, mas dizia que a utilizava apenas quando indispensável para dissipar concepções falsas e definir alguns termos. Mas era a distinção entre etnografia e etnologia que dominava a época – a etnografia era vista como mera descrição de dados; a etnologia, como uma tentativa de teorização dos dados prévios, considerados meramente empíricos, etnográficos. Naturalmente, etnologia tinha mais prestígio que etnografia.
Algumas décadas depois, já nos anos de 1950, foi a vez de Radcliffe-Brown enfraquecer a etnologia como o estudo histórico das sociedades primitivas – uma impossibilidade, para ele – e, por contraste, propor a antropologia social como um ramo da sociologia comparada.
No Brasil, não foi diferente. Em 1961, ao fazer uma conferência na reunião da ABA, Florestan Fernandes estimulou os antropólogos ali reunidos a abandonar a perspectiva puramente empírica, etnográfica, e a ousar mais, almejando uma perspectiva teórica, etnológica. Saiba mais sobre antropologia urbana no Brasil.
Etnografia, sociologia, etnologia, antropologia comparada são, portanto, termos que habitam o nosso universo mas, com freqüência, mudam de significado na configuração geral da disciplina. É curioso, no entanto, que até hoje a distinção etnografia=dados vs. etnologia=teoria ainda tenha o seu lugar, como descobri recentemente, ao ver um exercício para alunos de um curso do Human Relations Area Files, na Universidade de Yale. O exercício era formulado da perspectiva de que “etnografia é o estudo profundo de um grupo cultural particular”, enquanto a “etnologia é o estudo comparativo dos dados etnográficos, da sociedade e da cultura”. Nele, pedia-se que o aluno desenvolvesse uma “apresentação etnológica” a partir de dados coletados. Embora recente, esse exercício parece, hoje, fora de moda.
Mais na moda, no entanto, foi a preocupação com a etnografia no final dos anos 80/início dos 90. Naquele contexto “pós-moderno”, a etnografia passou a ser abertamente criticada, agora pelos próprios antropólogos, tendo como motivação central a característica “politicamente incorreta” do que ficou conhecido como “a autoridade etnográfica”. Nesse movimento incluíam-se Paul Rabinow, que falava de uma estágio “além da etnografia”; Martyn Hammersley, que se perguntava o que estava errado com a etnografia; Nicholas Thomas, que se posicionava abertamente “contra a etnografia”. (Foi nesse contexto que achei por bem tomar uma posição “a favor da etnografia”, em um texto-ficção – já que, escrito em português, os autores não saberiam que estavam sendo questionados no Brasil).
A etnografia, hoje
Rememoro esses acontecimentos com o objetivo de dizer que, hoje, um panorama muito diferente se apresenta: a etnografia volta à cena de forma positiva e potencialmente criativa – e não apenas no Brasil. Menciono dois indícios dessa renovação. O primeiro vem dos centros de produção acadêmica socialmente reconhecidos (para alguns, “internacionais”) e tem como índice o lançamento da revista Ethnography, em 2000, publicado pela Sage. Essa revista abriu com um manifesto a favor da etnografia, escrito por Paul Willis e Mats Trondman, que foi seguido de respostas positivas nos números seguintes. Essa iniciativa ampliou-se em vários encontros acadêmicos, sob o nome de Ethnografeasts, e geralmente reúnem pesquisadores de várias nacionalidades – os dois últimos de que tenho conhecimento foram realizados em Lisboa e Taipei, em junho deste ano. No momento atual, portanto, a etnografia passa a ser não apenas uma prática aceitável, mas desejável, sobre a qual se debate e se pretende afinar concepções.
O segundo indício vem de lugares que anteriormente foram sítios de pesquisa. Todos sabem que a antropologia sempre tendeu a dividir o mundo: há um século atrás estavam, de um lado, seus poucos praticantes, geralmente oriundos de uma pequena, mas dominante, fração do globo (Europa e Estados Unidos); de outro, os nativos possíveis, o resto do mundo (populações inteiras da Melanésia, Oceania, Ásia, depois África e América do Sul). Pois é pela população atual dos antigos sítios de pesquisa que o termo “etnografia” vem sendo recuperado, ao mesmo tempo em que se recusa a expressão “antropologia”, por suas conotações colonialistas. Penso, especialmente, na situação africana, na qual o que nós chamaríamos de antropologia é, lá, desenvolvida por filósofos, geógrafos, educadores, sociólogos. Todos podem “fazer etnografia”, e a todos é desejável uma “perspectiva etnográfica”. (Lembro-me do desconforto que o termo antropologia provocou em seminário realizado no ano passado na UnB, e que comparou Brasil e África do Sul, com a presença de especialistas de ambos os países, e a relativa tranqüilidade com que se utilizava o termo etnografia.) Aqui você pode ler algo sobre revista de antropologia – USP.
Há, nisto tudo, porém, um dado curioso. Tanto na revista Ethnography, quanto na prática dos cientistas sociais africanos, a etnografia é compreendida como, basicamente, um método. Desta forma, mesmo quando se pleiteia a necessidade de um quadro teórico, a etnografia, sendo, basicamente, uma metodologia, está acessível e aberta a sociólogos, historiadores, geógrafos, filósofos. Em alguns casos, inclusive, fazer etnografia é a forma de um autor se diferenciar e se distinguir nas respectivas disciplinas ou áreas de conhecimento.
É nesse contexto amplo que gostaria de sugerir que a (boa) etnografia de inspiração antropológica não é apenas uma metodologia e/ou uma prática de pesquisa, mas a própria teoria vivida. Uma referência teórica não apenas informaa pesquisa, mas é o par inseparável da etnografia. É o diálogo íntimo entre ambas, teoria e etnografia, que cria as condições indispensáveis para a renovação e sofisticação da disciplina – a “eterna juventude” de que falou Weber. No fazer etnográfico, a teoria está, assim, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas e nos nossos dados. Mais: a união da etnografia e da teoria não se manifesta apenas no exercício monográfico. Ela está presente no dia-a-dia acadêmico, em sala de aula, nas trocas entre professor e aluno, nos debates com colegas e pares, e, especialmente, na transformação em “fatos etnográficos” de eventos dos quais participamos ou que observamos. Desta perspectiva, etnografia não é apenas um método, mas uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria em ação.
Os comentários que se seguem têm como objetivo examinar algumas implicações deste ponto de vista.
Etnografias e monografias
Mencionei a expressão “fato etnográfico”, expressão cunhada por Evans-Pritchard. Em contraste com o “fato social” durkheimiano, Evans-Pritchard nos dizia que o fato etnográfico não deveria apenas estar refletido no caderno de campo do pesquisador. O fato etnográfico precisava estar dentro do antropólogo. Para atingir essa proeza, certas qualidades do observador eram necessárias: segundo ele, abandonar-se sem reservas, possuir certas características intuitivas, afinar-se com o grupo estudado, ter um temperamento específico, possuir uma determinada habilidade literária. Essa perspectiva de Evans-Pritchard obviamente ia contra a idéia da antropologia como ciência, e ele se sentiu à vontade para aproximá-la mais da arte, escandalizando a muitos, na época. A capacidade intelectual e a preparação teórica seriam indispensáveis, naturalmente, mas só elas não fariam, necessariamente, um bom antropólogo.
Este é um ponto central da síntese que Evans-Pritchard fez após viver várias experiências de campo – nem todos somos, ou podemos ser, bons etnógrafos. A personalidade do investigador e sua experiência pessoal não podem ser eliminadas do trabalho etnográfico. Na verdade, elas estão engastadas, plantadas nos fatos etnográficos que são selecionados e interpretados. Como relembrou o escritor sul-africano J. M. Coetzee, por meio da personagem Elizabeth Costello, a simpatia está do lado do “eu”, e não do “outro”, e se revela plenamente na capacidade de se colocar no lugar desse “outro”. Nesse encontro singular entre o etnógrafo e o grupo observado, a teoria surge como um terceiro elemento [um Terceiro peirceano], em princípio como uma convenção flexível que permite o diálogo produtivo.
Ao falar de etnografia, portanto, indiretamente nos reportamos às monografias clássicas da antropologia. O fazer etnográfico está na base das monografias, que continuam sendo o objetivo ideal (ou utópico) do investigador. Construídas como um retrato sincrônico de um momento específico, elas tornaram-se documentos de um horizonte histórico para as culturas e sociedades sob análise e, igualmente, documentos de um horizonte histórico para as sociedades dos etnógrafos que as produziram. Mas elas não apenas refletem um passado. Esta seria uma apreciação apenas histórica. De um ponto de vista teórico, elas nos indicam mais:
(i) primeiro, indicam-nos, na prática, os “fatos sociais totais” de Mauss, sugerindo como os diversos domínios que a ideologia do mundo ocidental separou – a política, o parentesco, a economia, a religião – estão sempre articulados, tanto nos grupos estudados, quanto nas sociedades do pesquisador. É pelo confronto com fatos sociais totais, geralmente não-habituais na nossa experiência, que o próprio pesquisador percebe que sua sociedade, sua cultura, sua visão de mundo, são apenas uma entre várias;
(ii) segundo, as monografias revelam o diálogo continuamente presente entre as perspectivas teóricas dominantes, inclusive no senso comum acadêmico, e os dados novos que o pesquisador presenciou, possibilitando, com freqüência, reconfiguração, questionamento, revisitação, refinamento das perspectivas teóricas iniciais. Malinowski confrontou a teoria econômica da época; Evans-Pritchard revisitou a bruxaria; Mary Douglas introduziu a noção de pureza; Leach questionou a idéia de que sociedade e cultura se sobrepõem necessariamente – e, a partir do trabalho de todos esses autores, nosso conhecimento e compreensão sobre esses temas ampliaram-se. Agitar, fazer pulsar as teorias reconhecidas por meio de dados novos, essa é a tradição da antropologia;
(iii) terceiro, as monografias confirmam a idéia de que a surpresa é um elemento fundamental do conhecimento etnográfico. Essa surpresa, de que falaram tanto Malinowski, quanto Lévi-Strauss, não decorre apenas de uma ingenuidade assumida – que não é de todo negativa -, mas é parte integrante da inquietação e do interesse que o etnógrafo experimenta no trabalho de campo. Mais uma vez, esses sentimentos estão no investigador, o que faz com que seja possível, como sabemos, fazer pesquisa etnográfica em lugares distantes, como em lugares próximos – com as mesmas força e densidade. Malinowski mencionou como, prevendo a existência de muitos “mistérios etnográficos” (o termo é dele), ocultos sob o aspecto trivial de tudo que se vê, o etnógrafo fica à espreita de fatos significativos. Esses sentimentos, sabem bem os alunos de graduação que fazem pesquisa, nos acometem, nos assaltam no momento em que definimos, para nós mesmos, que estamos “em campo”. O “campo”, portanto, não está lá; ele está dentro de nós, e se as surpresas nos parecem, às vezes, meros acasos, é que deles é feita a vida. Muitas vezes, inclusive, somos surpreendidos pelo fato de que a vida parece imitar a teoria;
(iv) dadas essas características das monografias, não é de todo inusitado que muitos antropólogos as considerem o legado mais importante da antropologia. Louis Dumont foi um deles, ao enfatizar que as monografias sempre incluem “fatos sociais totais” e se afastam das categorias ocidentais. Mais perto de nós, Darcy Ribeiro também confessou, um dia, que seus trabalhos teóricos pouco valiam, estavam inclusive “errados”. O conjunto de seus diários de campo era, sim, o que de mais importante havia produzido. E antecipava, inclusive, que o trabalho de Florestan Fernandes sobre os Tupinambá é que permaneceria vivo, enquanto as teses sobre a “revolução burguesa” possivelmente envelheceriam. (Isto foi dito em 1978.) Nesse contexto, também, fica mais claro o interesse recente por Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss, um livro que, por muito tempo, foi relegado às margens da antropologia.
Mencionei, anteriormente, como o movimento pós-moderno nos Estados Unidos questionou a etnografia. Como para comprovar os novos tempos (ou a retomada dos velhos), hoje alguns dos antigos defensores do credo pós-moderno recuperam o conceito de cultura tanto quanto as realizações passadas da antropologia. Em texto recente, Michael Fischer define a perspectiva antropológica numa metáfora instigante, como “o olhar do joalheiro”. Para ele, o olhar de joalheiro dos etnógrafos do início até a metade do século XX consistia em colocar em um mapa comparativo as lógicas culturais, as implicações sociais e as circunstâncias históricas dos trobriandeses, Nuer, Azande, Yoruba, Ndembu, Navaho, Kwakiutl, Shavante, Walpiri e outros, de modo a permitir a compreensão das possíveis variantes culturais e suas implicações sociais em diversos domínios. Do meu ponto de vista, o “olhar do joalheiro” revela, também, o movimento contínuo entre uma perspectiva teórica ampla e o mais minúsculo dos olhares. Assim, contradizer, reformular, repensar, desafiar as categorias do nosso senso comum do dia-a-dia (inclusive o senso comum acadêmico, repito mais uma vez), que experimentamos e vivemos como a nossa própria cosmologia, é uma tarefa central da etnografia. Em um mundo dominado por julgamentos de valor apressados, a antropologia (e a etnografia como seu exercício), tornam-se um modo de conhecimento que se caracteriza pela atenção permanente ao contexto e à comparação, construído em constante referência às dimensões da cultura e da linguagem.
A boa etnografia
Aqui, entro em um terreno perigoso e ouso perguntar: o que faz uma “boa etnografia”? Por que as monografias clássicas permanecem? O que faz uma etnografia ser melhor que outra? Existem etnografias boas e outras menos, ou mesmo pobres? A contribuição do cientista político Fábio Wanderley dos Reis à antropologia, há quase vinte anos atrás, e à qual muitos antropólogos reagiram de forma incômoda exatamente por tocar em um ponto sensível para nós, residiu na sua queixa de que a disciplina dava um mau exemplo às demais ciências sociais pela ênfase “nos longos depoimentos em estado bruto de mulheres da periferia urbana”. Na época, procurei contestar sua visão e lembrei que esses relatos dos quais ele se queixava eram entediantes também para os antropólogos – mas talvez se igualassem, para nós, às tabelas estatísticas dos cientistas políticos, necessárias, mas nem por isso menos enfadonhas. E procurei defender a idéia de que a antropologia não se reduzia a meras descrições grosseiras, mas resultava de um feedback entre pesquisa e teoria, que se travava em duas direções complementares – primeiro, no sentido da especificidade do caso concreto e, segundo, no caráter mais universal da sua manifestação. Mas muito aconteceu desde então. Ao receber o último número de Cadernos de Campo (a excelente edição de comemoração dos 15 anos), deparei com um texto-diálogo entre Bruno Latour – um autor muito em voga no Brasil atualmente – e um (suposto) estudante que deseja terminar a sua tese de sociologia. Nesse diálogo, uma ênfase recorrente é dada à descrição. O aluno que procura Latour está à procura de uma moldura, um quadro explicativo, uma teoria para as inúmeras descrições que já coletou e nas quais está afogado. Para aflição do aluno, o professor sugere que ele simplesmente faça mais descrições: “descreva, escreva, descreva, escreva…” é o que diz repetir aos alunos atualmente. Em dado momento, Latour usa uma expressão mais incisiva e diz ao aluno: “As descrições são o nosso negócio. Todos os demais [cientistas sociais] estão traficando clichês”, concluindo que bons trabalhos de campo sempre produzem novas descrições. Volto, então à questão do que faz um bom trabalho, uma boa etnografia.
Proponho que estas se baseiam (i) na habilidade de considerar a comunicação no “contexto da situação” – a expressão e a idéia são de Malinowski; (ii) na difícil transformação, para a linguagem referencial escrita, do que foi indéxico e pragmático na pesquisa de campo (volto ao tema); e, finalmente, (iii) na possibilidade de detectar, de forma analítica, a eficácia social das ações das pessoas.
Considero que essas três condições não são possíveis se não ultrapassamos a compreensão de senso comum sobre os usos e o papel da linguagem, já que etnografia e teoria se combinam por meio dela. O trabalho de campo se faz pelo diálogo vivo e, depois, a escrita etnográfica pretende comunicar ao leitor (e convencê-lo) de sua experiência e sua interpretação. É hora, portanto, de levar a sério a linguagem que, afinal, une etnografia e teoria de forma indelével. Nesta parte final da minha apresentação, enfatizo a relação entre teoria, linguagem e etnografia, apenas com o intuito de provocação. Parto do pressuposto de que toda teoria antropológica tem como base, implícita ou explicitamente, uma determinada concepção da linguagem – por ex., Boas a desenvolveu, ele próprio; Malinowski adotou a teoria nativa trobriandesa; Lévi-Strauss inspirou-se em Saussure e Jakobson; o mesmo fizeram Leach, Mary Douglas e (em parte) Sahlins, hoje; Victor Turner apoiou-se em Jung e Sapir. Se é impossível escapar de uma concepção de linguagem na antropologia, é melhor fazê-lo de forma consciente. Precisamos, então, tornar claros os pressupostos do nosso senso comum, da nossa forma de naturalizar a linguagem.
O senso comum sobre a linguagem
O fato geral do senso comum ocidental resume-se ao seguinte: acreditamos que a linguagem pouco tem a ver com outros fenômenos sociais. A linguagem parece diferenciar-se, ou separar-se, tanto das demais atividades que consideramos legítimo, por ex., fazer uma entrevista e analisar depois apenas seu conteúdo referencial. Consideramos “natural” que a função exclusiva da linguagem seja a de descrever coisas, ou falar sobre elas, isto é, acreditamos que o principal papel da linguagem é alcançado pela relação entre uma palavra e uma coisa.
A abordagem tradicional da lingüística que evolveu desse senso comum – e que certamente é mais sofisticada -, também procurou explicar a comunicação por meio de significados referenciais, embora os tenha definido pela sua posição em um sistema complexo. Saussure é a fonte mais reconhecida dessa perspectiva. Para o antropólogo, é importante, nessa abordagem, verificar que a linguagem é vista pelo seu fundamento psíquico. A fonte da linguagem é a mente, que une uma imagem acústica (por exemplo, a imagem mental do som “mesa”) e um conceito. O fato de o vínculo entre imagem acústica e conceito ser arbitrário é outro dado fundamental nessa perspectiva – i. e., os mesmos conceitos podem ser expressos por outros termos (por exemplo, “table”, se estamos falando inglês). Não há, portanto, nenhuma motivação intrínseca para que o conceito “mesa” só possa ter essa imagem acústica (“mesa”); essa relação é resultado de uma convenção. Mas, na pesquisa de campo, constatamos que as palavras fazem muitas outras coisas além de nomear e designar: elas apontam, acentuam, evocam, e até criam os contextos nas quais ocorrem. De novo, Malinowski foi o primeiro antropólogo a alertar para o perigo de se pensar que a linguagem apenas duplica o processo mental. Seguindo os trobriandeses, ele enfatizou sua função pragmática. Para Malinowski, a linguagem tem poder – o que ele desenvolveu especialmente ao tratar dos encantamentos.
Se, portanto, a etnografia é ação social, é comunicação, é “performance”, então, mesmo quando pensamos que estamos apenas trocando idéias, estamos “fazendo coisas” com as palavras. Um depoimento, uma entrevista, não são apenas relatos referenciais e propositivos, não apenas duplicam uma realidade mental que descreve o mundo por equivalentes verbais. Muitos são os significados embutidos numa conversa.
A face pragmática da linguagem
Nada disso é novidade para quem faz pesquisa de campo. Sabemos bem que, junto aos atos de referência ou descrição, a fala consiste de atos concomitantes de “indexação”, marcando e criando os limites da própria comunicação. Entre eles estão os papéis de quem fala, do ouvinte, da audiência etc.; os atributos sociais das pessoas envolvidas; o tempo, o lugar e a ocasião da comunicação; o objetivo da fala e outros fatores. O comportamento social em geral comunica fatos etnográficos no contexto dos eventos partilhados. Um exemplo interessante ocorre quando o etnógrafo revê histórias contadas ou entrevistas realizadas anteriormente, e que estão apenas transcritas (ou que foram transcritas por outra pessoa), e relembra o contexto dessas falas – i.e., a escolha do lugar, as pessoas presentes, o ritmo da voz, os personagens relembrados no relato etc. e observa que aquilo que parecia um simples relato pode ser, por ex., uma reivindicação, um ato de legitimação, uma declaração de posse, dirigida não necessariamente ao etnógrafo, mas aos demais presentes.
E assim é que outras abordagens ao fenômeno da linguagem e da comunicação em geral estabelecem que é impossível atribuir um significado único à maioria das interações do dia-a-dia. Estudar a fala apenas por seu valor proposicional é apreciar apenas uma fração dos significados sendo transmitidos em uma conversa. A grande diferença destas abordagens que incluem o significado pragmático – e que são novas apenas na sua utilização – se dá pela inclusão do Objeto empírico a que o signo se refere. Até então, a ênfase recaía nos conceitos e nas imagens acústicas mentais. A inserção do Objeto revela uma dinâmica intrínseca ao ato de fala. Menciono rapidamente três autores:
1) com Charles Peirce, por exemplo, a tríade dos signos composta por ícone, índice e símbolo não existe apenas combinada, mas em ação. (No “ícone”, as características do objeto são tangíveis, como, por ex., uma balança como signo de justiça; no “índice”, o signo está vinculado ao seu objeto como, por ex., o caso dos pronomes pessoais e indicativos (este, aquele); e, no “símbolo”, o signo parte de uma convenção, de uma lei geral). Essa multiplicidade traz conseqüências fundamentalmente mais ricas do que a prática de pensar a linguagem apenas como um fenômeno mental;
2) já com Roman Jakobson, reconhecemos as diferentes funções na comunicação. As interjeições (- Ah, não!) são mais emotivas que os imperativos, cuja função é chamada de conativa (“Que de hoje em diante só se faça etnografia!”), mas podem se combinar a declarações ou referências (“A etnografia é o fundamento da antropologia”). Se eu falar “Etnografia, ah, pura magia!”, estou acentuando a função poética. Mas, se pergunto “Vocês estão me ouvindo bem?”, estou testando um canal de comunicação (função fática), que é diferente de perguntar “Vocês estão me entendendo?” (que é uma pergunta metalingüística).
3) além da presença do objeto empírico (Peirce) e das funções da linguagem (Jakobson), é J. L. Austin que nos ajuda a resolver a velha questão da eficácia social ao apontar a característica performativa da linguagem. Ele lembra que fazemos muitas coisas com as palavras, além de designar ou fazer proposições. Por exemplo, há expressões que são eficazes por sua própria natureza. Há uma diferença entre dizer: – “A linguagem é um tipo de ação social” (estou fazendo uma declaração) e conclamar: – “Não se esqueçam de considerar a linguagem como ação social!”. Talvez minha locução não seja eficaz no sentido de trazer resultados, mas, veja, ela é eficaz como advertência. A advertência está embutida na própria forma de enunciação. Expressões “performativas” como autorizar, batizar, declarar guerra, advertir, não são medidas em termos do seu caráter de verdade, como as proposições, mas em termos de sua sinceridade e da sua eficácia. Palavras, assim como outras ações, têm uma “força” especial (“locucionária”, quando declarativa, ou “ilocucionária”, no caso de expressões performativas) – e essa força não é “adicionada” à ação; ela é intrínseca a ela; ela produz eficácia.
Escrevendo o vivido
Termino aqui. Lembro apenas que nossos outros sentidos – o olfato, a visão, a percepção espacial, o tato -, estão todos presentes na comunicação. Eles formam o “contexto da situação”, de que falava Malinowski, ou “a cena”, para usar um termo atual.
Qual o desafio do etnógrafo, então? Realizada a pesquisa, ele não pode apenas repetir o que ouviu – até citações precisam de contextualização. Ele precisa interpretar, traduzir, elaborar o diálogo que esteve presente na pesquisa de campo. O antropólogo precisa transformar a indexicalidade que está presente na comunicação em texto referencial. É preciso colocar em palavras seqüenciais, em frases consecutivas, parágrafos, capítulos, o que foi ação. Aqui, talvez esteja um dos desafios maiores da etnografia e, certamente, não há receitas preestabelecidas de como fazê-lo.
Podemos, sim, voltar às monografias clássicas, para lembrar que muitas foram as estratégias de transformação da pesquisa de campo em texto, o que pode ajudar a diminuir a possível ansiedade que antecede a pesquisa. Talvez não baste a orientação de Bruno Latour – “escreva, descreva, escreva, descreva…” – para evitar que se caia nos “relatos entediantes das mulheres da periferia urbana” de que nos falou Fábio Wanderley Reis. Nas monografias clássicas encontramos desde o conhecido “Imagine-se o leitor…” de Malinowski (um conativo, para usar o conceito de Jakobson), os relatos mais referenciais dos ritos Ndembu de Victor Turner (mas cujas redundâncias revelam aspectos inesperados), as “traduções” de Evans-Pritchard e a transformação da bruxaria, as diferentes versões de um mesmo ritual por Bateson.
Talvez não tenha sido por acaso que foi tão comum encontrarmos títulos espirituosos ou provocativos na primeira metade do século XX, tanto nos livros quanto nos artigos etnográficos. (P. ex., os títulos das monografias de Malinowski; os artigos “Virgin birth”, de Leach; “Twins, birds and vegetables”, de Firth; “Some muddles in the models”, de Schneider.) Não creio muito na versão que os vê apenas como expediente para uma maior vendagem. De uma perspectiva etnográfica, eles talvez denunciem um aspecto mais profundo. Talvez eles denunciem o empenho do etnógrafo em trazer a experiência da pesquisa para seus leitores. Hoje, passada a moda da ênfase exagerada, a persistência do caráter poético dos títulos, tanto quanto a arquitetura das monografias, talvez indique aquele pequeno detalhe do grande empreendimento existencial e intelectual da pesquisa de campo, apontando para a complexidade da tarefa que é comunicar uma nova descoberta e reavaliar a teoria acumulada, fazendo a teoria espiralar e alcançar novos patamares, desvendar novas questões, trazer novas dúvidas, ampliar o leque de possibilidades interpretativas e, assim, continuar a tradição da “eterna juventude” das ciências sociais
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