Andrea Grazziani Otero
UFRGS
Cena cotidiana no agitado centro de Porto Alegre é a de mulheres indígenas, sentadas sobre alguns panos colocados nas calçadas das ruas centrais da cidade, com os filhos pequenos no colo. Ou então, os maiores brincando em seu arredor. Expostas ao lado da mulher, encontramos algumas peças de artesanato: “bichinhos” (pequenos zoomorfos) esculpidos em madeira. Em outro lado, um cestinho vazio para receber o troquinho dos brancos que querem fazer caridade.
Em algumas situações só há o cestinho vazio. Essas mulheres e seus filhos apresentam-se ao olhar do branco vestindo roupas velhas e sujas, imagem que as tornam dignas da piedade de alguns, da indiferença de vários e da indignação de outros que identificam a situação das mães guaranis como de marginalidade e de exclusão social.
Devido à postura dessas mulheres e também à aparência com que elas e suas crianças se apresentam neste cenário, sua prática vem sendo denominada pelos não-índios de mendicância. Classificar o fenômeno dessa forma gera uma série de outros problemas como, por exemplo, denúncias feitas por não-índios aos órgãos governamentais responsáveis por atender as questões relativas aos povos indígenas (Conselho Tutelar, Brigada Militar, CEPI, FUNAI/ RS). Geralmente, tais denúncias expressam a preocupação dos brancos com a possível sujeição das crianças Mbyá a determinadas condições insalubres e de ‘maus-tratos’, devido ao descuido das suas mães, já que as mesmas permanecem, aparentemente, soltas pelo centro da cidade.
Tendo em vista que os não-índios consideram a prática das mulheres Mbyá no centro de Porto Alegre como mendicância, este trabalho pretendeu analisar as especificidades sócio-culturais do grupo étnico Mbyá-Guarani, num esforço sistemático de compreender a prática. Buscou-se demonstrar que havia muito mais aspectos envolvidos na questão do que a simples prática de mendicância.
Esta prática vem sendo chamada pelos Mbyá de poraró (pô = mão, aró = tempo, espera) e o processo de entender o significado de poraró foi justamente o que delineou o caminho deste trabalho. A tradução literal do Guarani para a língua portuguesa seria “esperar com a mão”; porém entender esta “espera” foi um trabalho árduo, só possível por meio do entendimento de como eles viviam antes da chegada do branco e como isto se relaciona com sua vivência atual.
Assim, o presente trabalho teve como objeto a ressignificação da prática tradicional do poraró, saída de seu contexto tradicional para uma forma de ocupação indígena no espaço urbano de Porto Alegre. Procurou-se entender como a prática do poraró alterou-se de relação de troca e reciprocidade intra-étnica para uma relação de troca interétnica, por vezes monetarizada, e como foi possível realizar essa transição mantendo o sistema de vida guarani (nhanderecó), e analisando as implicações desse contato interétnico.
O trabalho buscou a compreensão do fenômeno do deslocamento das mulheres da etnia Mbyá guarani para o perímetro urbano bem como o choque cultural entre os sistemas Juruá e Mbyá, utilizando as ferramentas antropológicas e não só o olhar institucional, de onde se origina a maioria dos discursos correntes sobre o tema. O objetivo foi contextualizar a prática do “esperar troquinho” no interior da atual condição de vida enfrentada pelos Mbyá-Guarani no RS, ao identificar alguns fatores que agravam a situação econômica das famílias Mbyá, contribuindo para o incremento do número de mulheres praticantes do poraró no perímetro urbano de Porto Alegre na primavera de 2004 e no verão de 2005.
Para isso, pretende-se descrever e analisar a problemática relativa à prática do “esperar troquinho” nas ruas centrais da cidade, analisando a reformulação contemporânea de saberes tradicionais da etnia Mbyá à luz das dimensões da vida social presente propiciada pelo crescente contato interétnico. Ainda, foi objetivo dessa pesquisa obter dados etnográficos e bibliográficos tendo em vista o aprofundamento da informação sobre suas ressignificações de territorialidade e organização social, contato interétnico, e, desta forma, informar os formuladores de políticas públicas para essa população sobre as peculiaridades do grupo. De um ponto de vista normativo, a pesquisa é um esforço para evitar que a visão discriminatória – que a maior parte da população branca tem da prática do poraró tal qual ela se apresenta hoje – não implique numa ação excludente ou mesmo higienista por parte do estado ou da sociedade civil organizada.
Para entender a dinâmica sócio-espacial da ocupação urbana do espaço central da cidade de Porto Alegre pelas índias da etnia Mbyá-Guarani, torna-se necessário fazer, antes de tudo, uma relativização através de breve contextualização histórica deste mesmo espaço ocupado por elas hoje em dia.
O “esperar troquinho” no centro
Além de proporcionar atividade e sustento, as mulheres utilizam-se do espaço urbano do centro de Porto Alegre também como lugar de sociabilidade, como antes da chegada do homem branco à região. No artigo “Presença Indígena em Porto Alegre”, Alberto Tavares Duarte de Oliveira estuda a história de Porto Alegre diante da ocupação dos grupos indígenas anteriormente à formação urbana, utilizando-se de crônicas e histórias da cidade dos séculos XIX e XX, que narram, entre outros, episódios envolvendo os guaranis no espaço hoje considerado urbano. A chegada e estadia do elemento civilizador branco fizeram uma parte da população silvícola mudar a localização de suas tabas; porém, achados arqueológicos explicam o passado indígena e sua ocupação ancestral em diversas áreas, sendo que o último sítio de ocupação indígena localizado até o momento encontra-se na Praça da Alfândega, na área central da cidade.
Desta forma, remetendo à idéia de um passado na ocupação do espaço central da cidade, atualmente as ruas de Porto Alegre também se constituem em um espaço de encontros de parentes Mbyá-Guarani que por ali transitam, tanto dos que esperam o troquinho, quanto dos que estão de passagem para outros lugares. Nesse espaço, encontram-se parentes e amigos de outras aldeias próximas à capital; sendo assim, a cidade se apresenta como um lugar onde se conversa e se atualizam as notícias sobre os familiares que moram em comunidades diferentes.
O poraró é uma forma de ocupar o espaço urbano e se instaura a partir da matriz sociocultural tradicional Mbyá-Guarani, pautada por uma alta mobilidade espacial que contribui para a manutenção e atualização das relações de sociabilidade estabelecidas entre os parentes Mbyá e que possibilita o filtro através do qual se interpreta o mundo do outro – o mundo dos brancos – e os seus diferentes caracteres – espaço urbano, bens de consumo e dinheiro – a partir de uma lógica simbólica própria. É importante ressaltar que tal sociabilidade também é parte do poraró, sendo considerada uma relação de troca espiritual dentro da cosmologia guarani e que, dentro desta lógica, a presença de crianças justifica-se na perspectiva guarani pelo fato destas alimentarem-se espiritualmente da mãe. Nessa perspectiva cosmológica, nota-se também que os espaços ocupados pelas mulheres Mbyá são circundados por praças arborizadas que, além de servirem de abrigo do sol nos dias quentes, servem de referência na ligação do Mbyá-Guarani com a natureza e na troca espiritual entre indivíduo e ambiente. Estes “espaços verdes” no centro da Capital correspondem, também, a referências geográficas para a localização das mulheres Guarani no espaço urbano, pois elas não conhecem os nomes das ruas ou avenidas. Num mesmo espaço onde Juruá se localizam por fachadas de prédios, direções de ruas, mulheres indígenas se situam pelo “cheiro das árvores, canto dos pássaros”.
Alguns fatores que agravam a situação econômica das famílias Mbyá
É importante ressaltar o poraró como fenômeno complexo, porque é causado e determinado por múltiplos fatores – históricos, econômicos, sociais e culturais – que contribuem para a sua atual e especifica configuração. O processo histórico de contato interétnico levou a transformações na organização social, na cultura, nos saberes tradicionais e na forma de vida Mbyá-Guarani. As TI atualmente garantidas para os Mbyá-Guarani neste Estado, em sua grande maioria são áreas pequenas e não possuem terra e ambiente natural suficientes e/ou adequados para a reprodução do modo de ser/estar tradicional.
A falta de recursos naturais nas áreas indígenas, as precárias condições para a caça, a coleta e o plantio tradicional de espécies de uso alimentar, artesanal e medicinal e a dificuldade enfrentada na confecção e venda do artesanato contribuem para o surgimento de relações de interdependência não sustentáveis com a sociedade regional, como por exemplo, o trabalho de peonato, onde se estabelece uma relação interétnica de troca de serviços no que concerne à lida com a terra e com os animais em uma propriedade rural, prestados em fazendas localizadas no entorno. Este serviço por vezes pode ser pago com dinheiro, mas também servir de troca por alimentos ou bebida alcoólica. Neste caso, agravam a situação de saúde destes povos indígenas.
As atividades e estratégias empregadas no sustento econômico das famílias Mbyá-Guarani no Estado são: a roça tradicional; a venda de artesanato na beira das estradas ou nos centros urbanos; os benefícios sociais disponibilizados pelo Estado para as famílias carentes (bolsa-família) e as doações de alimentos (cesta básica) feitas por organismos governamentais ou não; a aposentadoria dos mais velhos; a prática de prestação de serviço (peonato) nas lavouras existentes no entorno de algumas aldeias indígenas; o extrativismo da samambaia-preta (TI de Varzinha, Caraá) e o recurso proveniente da prática de esperar troquinho (“mendicância”) realizada nas ruas centrais das grandes cidades, por mulheres com crianças pequenas, residentes em aldeias indígenas próximas dos grandes centros urbanos.
Podemos antever que a prática do “esperar troquinho” nas ruas centrais do centro de Porto Alegre está inscrita em um contexto que envolve questões macroestruturais determinantes da qualidade de vida que os Mbyá-Guarani hoje possuem no RS. As causas que levaram as mulheres a fazerem o poraró no Centro são múltiplas, sendo que a principal é a falta de terra ambientalmente adequada e demarcada para os Mbyá viverem, trazendo conseqüentemente precárias condições de sustentabilidade socioeconômica e cultural para esse povo.
A perspectiva das lideranças Mbyá
Para as lideranças Mbyá-Guarani o poraró pode ser visto como uma alternativa econômica. O poraró é uma prática exclusivamente feminina e constitui-se numa atividade que busca suprir as necessidades de consumo da família identificadas pelas mulheres Mbyá-Guarani durante o seu cotidiano. Nesse sentido, o poraró apresenta-se principalmente como uma forma da mulher ter acesso ao dinheiro que lhe permitirá comprar aquilo que ela e sua família anseia ou necessita.
Mesmo assim, a principal preocupação familiar levantada pelas mulheres é a da falta de alimentos nas aldeias. Também existem outras necessidades de consumo, por exemplo: material de higiene (sabão, xampu, sabonete, creme dental, desodorante, fraldas descartáveis), de uso pessoal (roupas, sapatos), fumo de corda, passagens para viajar. Afinal de contas, “hoje em dia Guarani usa tudo”.
Nas reuniões realizadas junto com as comunidades indígenas da Lomba do Pinheiro, Coxilha da Cruz, Itapuã e Canta Galo, as lideranças Mbyá deixaram claro que não têm como proibir as mulheres de irem fazer poraró no centro, a não ser que haja outra forma de gerar renda para as mulheres dentro da própria aldeia. Mesmo assim, a intenção não é parar com a prática do poraró, mas melhorar as condições em que hoje ela é realizada.Entretanto, algumas vezes essas mulheres vão ao centro não apenas para conseguir recurso para comprar alimentos, mas sim para comer, pois ali elas, juntamente com suas crianças, ganham comida – bolachas recheadas, balas, cachorro-quente, pastéis, refrigerantes, frutas – dos brancos que passam e se compadecem. Logo, além de ser uma fonte de renda, a prática do esperar troquinho constitui-se numa forma imediata de resolver o problema do sentir fome.
Por outro lado, essa prática também pode constituir-se em uma forma de ocupação para as mulheres Mbyá que não têm o que fazer nas pequenas aldeias em que vivem. Algumas mulheres inclusive afirmam que vão ao Centro fazer poraró porque gostam.
A falta de renda para suprir as necessidades identificadas pelas mulheres aumenta quando as mesmas são separadas ou quando seus esposos não conseguem produzir artesanato por falta de matéria-prima nas aldeias ou quando não existe a possibilidade de prestação de serviço como peão em propriedades existentes em torno das comunidades. Como as comunidades-alvo deste diagnóstico estão localizadas próximo ao espaço urbano de Porto Alegre, essa alternativa para a produção de renda é escassa. Por outro lado, os Guaranis também enfrentam grandes dificuldades para a venda do seu artesanato.
As necessidades de alimentação aumentam quando as atividades tradicionais da plantação e do artesanato que contribuem para o sustento das famílias Mbyá são comprometidas, por causa das atuais condições das terras indígenas. Nem sempre os Guaranis obtêm resultado daquilo que plantam (milho, mandioca, feijão, melancia, amendoim, batata doce etc.), ou porque a terra não é fértil, ou porque a invasão de animais vizinhos destrói a plantação, como ocorreu em meados de novembro de 2004 na aldeia Anhentegüá, na Lomba do Pinheiro. Além disso, no final do ano de 2004 e início de 2005, o Estado do Rio Grande do Sul enfrentou uma grande seca que comprometeu as lavouras dos Guaranis, assim como secou a taquara utilizada no artesanato. Segundo as lideranças, essa contingência elevou o número de mulheres que recorreram à prática do “esperar troquinho” no centro de Porto Alegre, buscando alimentar sua família.
Para os Mbyá-Guarani, a prática do poraró não se confunde com mendicância, na medida em que as mulheres que “esperam troquinho” não pedem nada, gesto que seria característico do ato de mendigar; elas apenas esperam que algum branco de “bom coração” possa ajudá-las, dando dinheiro, comida, roupa ou qualquer outra coisa. Na leitura feita pelas lideranças Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul sobre o poraró (esperar troquinho) desenvolvido pelas mulheres Mbyá no centro de Porto Alegre esta prática não se constitui em um problema, pois, em certa medida, faz parte do seu sistema tradicional de vida, e é uma forma de dar continuidade ao seu modo de ser/estar e de habitar o mundo, inclusive no meio urbano.
A prática do poraró constitui-se numa forma cotidiana das famílias se relacionarem comunitariamente. Ela é uma atividade orientada pelos princípios da reciprocidade e o da partilha de bens, fortalecendo os laços existentes entre os parentes, sejam eles afins e/ou consangüíneos. As lideranças Mbyá comentam que antigamente quando uma família encontrava uma árvore com frutas no mato, ela se apropriava da mesma e depois chamava as demais famílias para comerem com elas. A mesma coisa acontecia com a caça: quando alguma família tinha carne de caça para fazer a sua refeição, as mulheres de outras famílias poderiam pegar seus filhos e fazer uma visita à casa daqueles que tinham capturado a caça. Sem nada pedir, respeitando as normas de etiqueta e da boa educação segundo os padrões Mbyá-Guarani, os visitantes esperam que os anfitriões lhe ofereçam um pedaço da carne da caça para comerem todos juntos. “Esse é o sistema comunitário”. Fazer poraró é partilhar e compartilhar aquilo que se usa: seja a partilha da comida, seja do chimarrão ou do cachimbo.
O poraró enquanto presença constitui-se no contexto do estar junto compartilhando as palavras, a comida, o chimarrão, o cachimbo, a companhia. De acordo com esse ponto de vista, as lideranças Mbyá não consideram que as mulheres Mbyá estejam ocupando um lugar errado, mas sim que elas estão agindo conforme seu sistema tradicional. Além do mais, este é um espaço exclusivamente feminino e os homens têm vergonha de fazer o poraró. Atualmente não existe mais a floresta onde eles possam buscar alimentos; por este motivo, as mulheres vão fazer poraró no centro. Diante desse quadro, as lideranças indígenas avaliam que o branco, ao considerar que os Mbyá estão fora de lugar quando fazem poraró no centro de Porto Alegre, estão sendo preconceituosos e esclarecem: “Os brancos não podem achar ruim o poraró, as mulheres não vão roubar, nem assaltar” (Inácio Lopez).
Os perigos e conflitos associados à prática do poraró no meio urbano
Apesar do poraró não ser considerado um problema em si, já que é uma prática tradicional do viver dos Mbyá, as lideranças reconhecem que o “esperar troquinho” no centro de Porto Alegre pode trazer alguns transtornos para as famílias Mbyá e representar alguns perigos para mulheres e crianças adeptas dessa prática. De acordo com este ponto de vista, a visão do branco que lê a prática do “esperar troquinho” realizada pelas mulheres Mbyá como mendicância é negativa e preconceituosa, ao mesmo tempo em que demonstra desconhecimento sobre o modo de ser/estar Mbyá-Guarani. Em função desse desconhecimento muitos brancos vão fazer reclamações e denúncias ao Ministério Público Federal, ao Conselho Tutelar, a Fundação Nacional do Índio e a outros órgãos governamentais ligados aos povos indígenas, sobre uma possível situação de maus-tratos vivida pelas crianças Mbyá.
Ora, na perspectiva Mbyá, a criança precisa estar sempre acompanhando a sua mãe porque não é só de comida que ela se alimenta, mas é na presença mesmo da mãe que ela se alimenta espiritualmente garantindo assim sua saúde. Nesse sentido, enquanto o não-índio pensa que as mulheres Mbyá usam as suas crianças para conseguirem mais dinheiro, sem tomar os devidos cuidados com as mesmas e por isso expondo-as a situações de maus-tratos, os Mbyá consideram que maus-tratos aconteceriam se a mulher deixasse seus filhos em casa privando-os de sua presença. Por fim, cabe ressaltar que as lideranças Mbyá entendem que o centro de Porto Alegre também é o lugar do Guarani e que os brancos precisam disso saber.
No ponto de vista do não-índio, as mulheres e crianças Guarani ao ocuparem os espaços urbanos para “esperarem troquinho” estão fora do seu lugar “natural”, na medida em que o lugar do índio seria na aldeia e não no centro de Porto Alegre. Segundo esta visão o que as mulheres Mbyá estão fazendo é mendicância e ao se sentarem nas calçadas dessas ruas centrais esperando que alguém lhe dê alguma “coisa”, encontram-se em uma situação marginal e de exclusão social. Nesse sentido, o lugar ocupado pelas mulheres Mbyá-Guarani que “esperam troquinho” no centro de Porto Alegre não é adequado ao que se esperaria do “verdadeiro” indígena, na medida em que o lugar do mesmo seria a aldeia.
Por outro lado, muitas das pessoas que transitam pelas ruas centrais de Porto Alegre, nem mesmo percebem que existem indígenas ocupando ali o espaço. Podemos identificar três tipos de postura adotadas pelos transeuntes das ruas centrais de Porto Alegre e que convivem com a cena diária das mulheres Mbyá, sentadas no chão junto a suas crianças, esperando uma “ajuda” do branco: as pessoas que não dão importância, não olham e não percebem a existência das mulheres indígenas; as pessoas que dão troquinho, mas que demonstram reprovação àquela situação; e, como dizem as mulheres, os brancos que dão “de coração”.
Na visão do indigenista Elomar Gerhardt, da FUNAI, o não-índio considera a situação em que vive a mulher Guarani hoje como “desumana e humilhante”, mas que os indígenas não vêem da mesma forma. Segundo ele, a mulher guarani está perdendo a função social dentro das aldeias, porque hoje não existem mais as atividades tradicionais. Em visita à FUNAI, CEPI e Conselho Tutelar, não foi constatada nenhuma denúncia de maus-tratos às crianças indígenas causados pelo descuido de suas mães. Nesse sentido, não podemos saber quantas destas denúncias se sustentam sobre uma base empírica concreta e quantas são motivadas pelo preconceito dos não-índios com relação às mulheres Mbyá-Guarani que “esperam troquinho” nas ruas centrais de Porto Alegre.
Se do ponto de vista do guarani o centro de Porto Alegre é um lugar adequado para se estar, e se também ali é um espaço para a reprodução de suas instituições sócio-culturais tradicionais, para o branco este lugar ocupado pelas mulheres e crianças Mbyá que fazem poraró é um espaço marginal e não-cidadão. Diante dessa constatação, faz-se necessário transformar esse local habitado pelo Guarani em um lugar oficial e legitimo, que acolhe e convive com a diversidade. A partir daí poderemos pensar na construção de políticas públicas adequadas para lidar com essa situação, sem buscarmos a retirada dos Guaranis do centro, no estilo de limpeza étnica de Porto Alegre; e sem empreendermos um processo de domesticação destas mulheres indígenas que, na visão do não-índio, só poderiam habitar o meio urbano de Porto Alegre segundo a sua forma de ser, de estar e de agir, conforme um modo padronizado, disciplinado, homogêneo, limpo e correto. Afinal, como dizem as lideranças Mbyá: “O guarani tem direito de estar no Centro de Porto Alegre. E tem direito de estar como ele está. Porto Alegre tem que ter orgulho de ter o guarani Mbyá!”
Considerações finais: Esperar troquinho, problema social branco?
Quando o Brasil foi descoberto, 5 milhões de índios viviam onde hoje sobrevivem 329 mil, numa área que representa menos de 12 % do território nacional, segundo números oficiais. A expectativa de vida destes povos não é nada boa. Nos últimos três anos, caiu em 11%. Os motivos: as péssimas condições de vida, sobretudo o acesso aos serviços de saúde e o contato com doenças urbanas. Diante desse contexto indígena histórico e o exposto neste trabalho desde sua introdução, nas considerações finais refletimos sobre a atual situação dos indígenas Mbyá. A sociedade, não levando em conta seu passado e suas especificidades sócio-culturais, os estigmatiza e segrega por sua condição étnica e econômica. Introjetando o preconceito, surge o sentimento de vergonha pela prática tradicional do poraró, criando situações de constrangimento para a população de mulheres que freqüentam o centro da cidade de Porto Alegre.
Cabe pontuar que pela noção de pessoa, vigente no Estatuto da Criança e do Adolescente tanto a criança quanto o adolescente enquanto pessoa em desenvolvimento, assim como a noção de família natural ali presente, não condiz nem com as bases empíricas da organização social e do sistema de parentesco Mbyá-Guarani – que está baseada na família extensa – e nem com a compreensão e com os mecanismos de fabricação de corpos e de produção de pessoas presentes nesta sociedade indígena . Sendo assim, para que este Estatuto possa ser aplicado aos povos indígenas, ele deve ser pautado pelo conhecimento profundo sobre a organização e a estrutura social destes povos, bem como deve ser discutido de forma participativa com as lideranças indígenas.
O desconhecimento sobre estes contextos apresentados é refletido na falta de capacidade das instituições de apoio ao índio em lidar com situações de diferenças interétnicas e ainda, no caso do poraró, inter-gênero. Devemos evitar a visão romanceada do índio, que vem freqüentemente à tona nas análises sociais, quando as culturas tradicionais são comparadas às modernas.
Foi apontada a marcante diferença cultural para com os indígenas, resultando na concepção de um espaço na cidade bem demarcado: fora do espaço urbano, apontando para o espaço central da cidade, como um local que não lhes pertencesse. Na concepção Juruá, quando o índio sai da aldeia, causa confusão e passa a constituir um problema para a sociedade, transparecendo que a presença destes na cidade é impossível. Dentro desta concepção, o meio urbano é o local da civilização, oposto à “selva”, local do índio. Entretanto, considerando as especificidades sócio-culturais do grupo étnico Mbyá-Guarani no contexto do poraró, podemos afirmar que, apesar dos não-índios considerarem a prática das mulheres Mbyá no Centro de Porto Alegre como mendicância, os Mbyá-Guarani não interpretam tal prática da mesma forma.
Consideramos que um dos aspectos por trás dessa falta de identificação do índio com o espaço urbano é uma lógica de mercado. Nesta lógica, tanto as crianças e adolescentes que vivem nas ruas, os mendigos, assim como os índios, não obtendo poder de compra, devem ser segregados, e,portanto, não possuem o direito de circular nestes espaços. Para a sociedade não-índia, índios são disfuncionais, sua cosmologia, sistema de viver, sua cultura, são vazios de significado: inúteis, fora do campo da história e da arte. O atual sistema ocidental processa a disfuncionalidade como imoralidade, onde disfuncionalidade é loucura e portanto patológica. Ou seja, se o indivíduo não funciona direito ou não consome, está fora do mercado – e por isso deve ser retirado do sistema.
Cabe dizer que a própria metodologia participativa desta pesquisa constituiu um método privilegiado para o entendimento do universo Mbyá. Por meio desta metodologia, foi possível conceber uma pesquisa que não apenas informa a comunidade científica, como expõe aos tomadores de decisões políticas alguns dos caminhos possíveis para uma política pública compreensiva e respeitadora da cultura guarani. Dentro dessa visão, algumas ações podem ser desenvolvidas no sentido de reduzir a reprodução de preconceitos e estigmas por parte da população não-índia, assim como legitimar as diferentes formas de ocupação de espaços e expressão de cultura tradicional indígena dentro de um contexto de constante fricção interétnica.
Nesse sentido, como foi apontado pela própria comunidade Mbyá, torna-se necessário “educar o branco” para entender a cultura indígena, e assim respeitar as diferenças na forma de compreender o homem e o universo.
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