Inúmeros autores afirmaram a morte da rua na cidade contemporânea. Nomes como Richard Sennett, Mike Davis ou Jane Jacobs difundiram a ideia de que, ao longo do último século, as ruas tinham deixado de ser espaços de socialização. Assim, as ruas teriam sido transformadas em espaços inóspitos, habitadas por grupos e indivíduos marginalizados e destinadas a serem um mero espaço de ligação entre casa, trabalho e actividades de lazer. As suas conclusões, mais do que negadas ou comprovadas, devem servir de estímulo para tentarmos compreender o lugar da rua na vida social urbana.
O objectivo deste texto é mostrar como a função das ruas mudou de forma significativa nos últimos dois séculos. Em primeiro lugar, vou introduzir algumas premissas que considero importantes para uma discussão mais conceptual em torno deste território específico – a rua. Assumo, contudo, um ponto de vista específico – a acção do Estado. Assim, uma segunda parte deste artigo dedica-se à identificação e análise das mudanças operadas sobretudo durante as décadas finais e iniciais dos séculos XIX e XX nos usos do espaço público urbano, concebidos, projectados, executados e negociados por instituições e agentes estatais.
Este período foi percorrido, em todo o universo urbano, por um movimento de reforma. Reforma do espaço, mas também dos usos e dos hábitos. Com a intensificação do crescimento urbano, a cidade e as formas de vida urbana colocaram novos problemas, exigindo novas soluções. A reforma do espaço público urbano deve, assim, ser entendida como uma peça num amplo processo de reforma do fenómeno urbano. As ruas passaram, aos olhos do Estado, a ser concebidas como espaços de circulação e mobilidade. A emergência da Estado, na sua configuração contemporânea, como agente administrativo capaz de intervir sobre o espaço e relações sociais é, então, fundamental para compreender as mudanças na vida urbana moderna. De facto, sob o arco estatal albergaram-se saberes e práticas que de forma decisiva transformaram as práticas de rua. Não se deve contudo sobrevalorizar o poder detido pelo Estado. As mudanças não ocorreram sem uma abrangência social mais alargada. Em primeiro lugar porque os agentes administrativos eram (e são) parte integrante da cidade. É um erro transformá-los em casta à parte ou em homens sem rosto. Estes agentes eram na sua maioria habitantes da cidade que tentavam gerir; e faziam-no enquanto tal. Em segundo lugar, as mudanças registadas não se fizeram sem maiores ou menores focos de resistência por parte dos habitantes da cidade. Muitas das soluções adoptadas, assim como as razões para processos temporalmente mais ou menos alargados, geraram-se em processos de resistência e conseqüente negociação entre o Estado e as populações. Neste artigo tentaremos demonstrar como o Estado deve ser visto através da diversidade das suas acções e como a sua acção é condicionada, mesmo a um nível micro, pelos habitantes da cidade.
Neste artigo vamos abordar agentes e instituições estatais relevantes nas mudanças ocorridas na rua. Em primeiro lugar, os engenheiros. Num plano destacado, este grupo profissional ocupou os lugares de topo nas instituições de governo da cidade. Propôs e discutiu conceitos e soluções de cidade e para a cidade, conduzindo a mudanças profundas sobretudo ao nível do espaço construído. Em segundo lugar, os médicos. Eles foram conselheiros dos engenheiros para um espaço urbano leve, limpo e saudável. Eles foram os grandes propagadores de hábitos mais saudáveis e higiénicos. O último e principal exemplo aqui apresentado é a polícia. A polícia tem sido um aspecto negligenciado pela história urbana. No contexto da transformação urbana foram muitas vezes considerados agentes menores. No entanto, actuando numa dimensão quotidiana, a uma escala situacional, embora algumas vezes de forma intermitente, deram um contributo fundamental para a mudança de alguns hábitos urbanos.
As reflexões contidas neste artigo começaram por ser parte de um trabalho académico sobre polícia urbana em Lisboa. Mais tarde, a investigação integrou-se num projecto mais alargado sobre vida urbana. Nesse contexto, tentei explorar alguns dos resultados obtidos na pesquisa sobre a polícia inserindo-os na temática mais ampla do governo da cidade. Desta forma, Lisboa é o caso empírico aqui contemplado. No entanto, nunca deixei de estabelecer comparações com outras cidades européias e americanas, não só porque a comparação é uma metodologia enriquecedora do trabalho histórico, que se depara frequentemente com lacunas nas fontes. Mas também porque (como ficará especialmente evidente no caso da polícia), as estratégias administrativas adoptadas pelos Estados circularam de país para país influenciando-se mutuamente, não sendo possível compreender o fenómeno do Estado como agente social activo sem uma perspectiva global. Este é, portanto, um trabalho que, incidindo no exemplo de Lisboa, não pode ser desligado da urbanização como processo global.
A rua: um território público?
Antes de avançarmos para a análise da intervenção Estatal, é necessário proceder a uma aproximação problematizadora ao conceito de rua. Quer se olhe do ponto de vista físico, ou das apropriações sociais que os citadinos aí operaram, as ruas mudaram significativamente durante os séculos XIX e XX. Por isso, mais do que avaliar situações em concreto importa, em primeiro lugar, explorar a mudança mais geral no próprio conceito de rua. Pretende-se, assim, contribuir para um debate em que a rua pode ser encarada como conceito explicativo de certos processos sociais.
A rua é um espaço urbano. Trata-se de uma forma de organização do espaço intrinsecamente ligada ao fenómeno urbano, onde a densidade do espaço construído assume proporções únicas. Nos campos, onde as casas são normalmente envoltas em terrenos agrícolas, não se formam estes espaços de ligação entre as habitações. Só a aglomeração de pessoas em núcleos habitacionais alargados tende a gerar estes espaços: as ruas. No entanto, o conceito de rua enquanto espaço público é um assunto que levanta alguns problemas. De facto, a invenção da rua como lugar público é um processo historicamente determinável e não uma característica intrínseca ao próprio espaço. A rua não foi sempre um lugar de acesso irrestrito e público no sentido de pertencer a todos. Pelo contrário, a afirmação do carácter público da rua é um processo que podemos observar ao longo de todo o século XIX, sendo que em Portugal ocorre especialmente durante a segunda metade do século. Esta mudança não pode ser separada da emergência do Estado enquanto entidade emanada do todo social e da consolidação do seu poder. Mas, mais do que o carácter público, a rua ganharia ao longo do século XIX uma função social específica – a circulação. Este processo deve ser visto sob duas perspectivas: por um lado, as numerosas práticas que vão deixar de tomar parte nas ruas da cidade. Por outro, a forma como se estruturou a rua para esta nova função.
A afirmação do carácter público – no sentido de ser de todos – é um processo que, à partida, parece residir na própria afirmação do Estado e do império da lei. Em Portugal, apenas na segunda metade do século XIX a ruas da cidade passaram a ser, em letra de lei, consideradas território de todos. Numa lei datada de 31 de Dezembro de 1864 estabeleceu-se o carácter público das ruas da cidade, delegando ao Estado o poder e a responsabilidade pelo seu governo:
“Estas ruas [do interior das povoações] são públicas, designadas ao uso de todos, sem excepção de pessoa; ninguém pode delas exclusivamente dispor e gozar, exactamente como acontece nas estradas de todas as ordens e nos caminhos-de-ferro. O facto de serem as estradas situadas num município, num distrito, num país, em nenhum tempo foi razão justa para proibir que por elas livremente transitassem os estranhos a esse município, distrito ou nação. O mesmo sucede nas ruas. (…) São as ruas do domínio público, porque fazem parte da viação pública ordinária. E classificadas assim, é incontestável o direito que o governo tem de superintender na sua construção, conservação e polícia, não enfraquecendo a acção municipal ou cerceando as atribuições das câmaras, senão mantendo-as e fortalecendo-as com os auxílios técnicos e administrativos da autoridade central.”
Naturalmente, o Estado não passou imediatamente intervir de forma regular sobre a rua. Esse foi (e continua ainda agora a ser) um processo lento, com constantes avanços e recuos. Um processo que deve ser analisado não só do ponto de vista legal, por meio da criação de legislação que legitima a acção estatal sobre o espaço público urbano, mas, também, de um ponto de vista mais estrutural, dos recursos humanos disponibilizados pelo Estado para agirem sobre a rua. Assim, nesta lei ficou sobretudo expressa a centralidade do Estado e da lei como mediadores das relações sociais e a afirmação do carácter público das ruas da cidade.
Os engenheiros: a construção material da cidade
Durante o século XIX a engenharia afirma-se como uma das mais poderosas e influentes comunidades profissionais. A emergência profissional dos engenheiros decorreu sobretudo de dois processos: a separação da instituição militar e consequente afirmação da engenharia civil; e a afirmação do engenheiro como elemento fulcral num desenvolvimento sustentado nos melhoramentos materiais. Seguindo o modelo francês, e contrariando o modelo inglês, seria o Estado o principal empregador dos engenheiros portugueses (Lisboa, 2002:11-14). A criação do Ministério das Obras Públicas em 1852 constituiu um primeiro momento de afirmação social dos engenheiros. No entanto, é a sua acção ao nível da administração municipal que aqui nos interessa abordar.
Nos serviços técnicos municipais de Lisboa consolidou-se o poder dos engenheiros, não só por serem possuidores de um saber técnico fundamental para a construção do espaço urbano, mas também porque assumiram protagonismo assinalável ao nível político. Estes homens afirmaram-se, então, como detentores da capacidade técnica e do poder político para a modernização do espaço público urbano.
O papel dos engenheiros já tinha sido fundamental na reconstrução da cidade após o terramoto de 1755, mas apenas na segunda metade do século XIX a sua acção se consolida nas práticas administrativas quotidianas. Significativamente, o primeiro engenheiro a destacar-se dentro da máquina administrativa municipal era de origem francesa: Pierre Joseph Pezérat. Ele foi o responsável pela introdução na agenda municipal de um conjunto de assuntos, entre eles o estado das ruas, que constituem uma grande parte do que hoje consideramos ser a administração municipal. Em 1874 entrava para os serviços camarários o engenheiro Ressano Garcia, que se tornou rapidamente uma figura emblemática da expansão oitocentista da cidade de Lisboa. Para além do planeamento, projecção e construção de toda uma nova parte da cidade que se afastava do rio em direcção ao interior, importa aqui destacar o papel de Ressano Garcia na reorganização e modernização dos serviços técnicos camarários. De facto, sua acção enquanto urbanista tem sido ao longo do tempo realçada; a reforma que imprimiu aos serviços camarários introduzindo procedimentos administrativos que agilizaram e tornaram mais eficaz a sua acção, deve também ser tida em conta, uma vez que possibilitou uma actuação mais regular da Câmara Municipal. Nos anos 1930, coincidindo com o dealbar de um regime político autoritário – o Estado Novo –, surgiu Duarte Pacheco. Antigo director da principal escola superior de engenharia de Portugal, ocupou durante perto de uma década, simultaneamente, os cargos de Ministro das Obras Públicas e de Presidente da Câmara Municipal de Lisboa. Esta sobreposição de cargos deixava visível a indefinição de fronteiras entre o que era Estado Central e Estado Local que, de resto, se vinha verificando desde o século XIX.
Os médicos: “bons ares” na cidade e a cruzada da limpeza
O ano de 1848 não foi apenas de revoluções e do Manifesto Comunista de Marx e Engels;, foi também o ano do primeiro Public Health Act em Inglaterra. Num país normalmente avesso a grandes interferências governamentais, este momento foi o significado da emergência de um movimento cada vez mais visível – as preocupações com a saúde pública.
A cidade foi recorrentemente representada como um espaço decadente, sujo, repleto de vícios e maus hábitos. Ruas imundas conduziam, na passagem do século XIX para o século XX, a dois tipos de preocupação: ao nível sanitário (com a sujidade das ruas a ser entendida como factor essencial na transmissão de doença; o medo dos miasmas canalizou numerosas preocupações, constituindo motor para numerosas mudanças operadas na cidade) e a um nível mais simbólico (a sujidade da rua era entendida como sinónimo de decadência moral de toda a sociedade, algo que deveria ser combatido por todos os habitantes, mas, sobretudo, pelo governo activo do Estado). Os médicos e suas múltiplas teorias de higiene foram poderosos agentes no processo de retirada da rua de numerosas actividades. Desde vários tipos de comércios ambulantes até à regulação e repressão de comportamentos moralmente condenáveis, os médicos foram os ideólogos, mas também os executantes, de políticas estatais de intervenção sobre a rua com o objectivo de as limpar.
As correntes de higiene e saúde pública não tinham a rua como finalidade exclusiva; muito pelo contrário. A rua surgia como unidade específica, dentro de uma ampla intervenção que contemplava assuntos como a higiene individual, a salubridade das habitações ou as políticas que visavam o controlo dos animais que circulavam pela cidade. Interessa-nos aqui, num registo exploratório, tentar identificar o lugar da rua na higienização da sociedade e o papel do Estado nesse processo.
Os médicos começaram por ser muito importantes como conselheiros dos engenheiros na definição do espaço construído, projectando novas ruas onde o ar pudesse circular livremente. Mas onde, provavelmente, a sua acção se tornou mais visível foi na promoção de novos modelos sociais de comportamentos higiénicos ao nível do individuo mas, também, do colectivo social. A sua critica às formas tradicionais de fazer comércio, onde a rua e a praça surgiam como lugares centrais, resultou, por exemplo, no amplo movimento de criação de mercados e matadouros municipais (ver Joyce, 2003).
A ciência do urbanismo que se consolidou durante o século XIX deveu muito ao desenvolvimento e aos ensinamentos extraídos da medicina social. Os departamentos de limpeza pública passaram, na segunda metade do século XIX, a ser um elo fundamental da administração municipal. Até nos Estados Unidos, onde os poderes públicos se mostravam sempre relutantes em assumir novos poderes, as instituições municipais investiram significativos recursos nas divisões de limpeza das ruas. Ao abrigo das concepções científicas da propagação de germes, difundidas pelos médicos, figuras como George Waring, Comissário de Limpeza das Ruas de Nova Iorque na década de 1890, ganharam proeminência nas instituições de governo da cidade (McShane, 1994: 50-56).
A prostituição apenas seria tolerada desde que remetida ao espaço privado – o bordel. Desta forma, o espaço público devia ser liberto e limpo de actividades moralmente condenáveis. A tolerância da prostituição tinha uma das suas principais bases na repressão da prostituição quando exercida na rua. Consequentemente, deveria existir uma limitação desta actividade ao espaço privado, numa casa de quatro paredes e janelas tapadas. Com efeito, não só era considerada esta fronteira mais geral, como também as acções que colocassem em causa esta separação. Os regulamentos referiam-se então ao “janelar” das prostitutas. Elas estavam impedidas de vir à janela tentar cativar clientes, devendo as janelas de suas casas estarem tapadas com tábuas. A separação entre os territórios públicos e o espaço privado deveria ser total. A rua era um espaço a ser protegido e liberto para que todos pudessem circular. A divisão entre espaço público e privado no controlo da prostituição foi transposta para a letra de um popular fado:
“É numa rua bizarra
A casa da Mariquinhas
Tem na sala uma guitarra
E janelas com tabuinhas
Vive com muitas amigas
Aquela de quem vos falo
E não há maior regalo
Que a vida de raparigas
É doida pelas cantigas
Como no campo a cigarra
Se canta o fado à guitarra
De comovida até chora
A casa alegre onde mora
É numa rua bizarra.”
(”A Casa da Mariquinhas”, de Silva Tavares & Alfredo Marceneiro, sublinhado meu).
A Polícia: ordem, resistências e negociação dos usos da rua
Se as acções de engenheiros e médicos têm sido muito estudadas por historiadores, as práticas policiais, entendidas neste contexto de transformação dos usos da rua, são, ainda, um tema por estudar. A polícia, na sua relação com o espaço urbano, constitui uma temática que apenas superficialmente tem sido abordada.
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