Tarcísio de Arantes Leite
Lingüística – USP
O olhar da sociedade majoritária sobre a língua e identidade dos surdos mudou rapidamente nos últimos anos. Hoje, imersos num conturbado período de transição, vivemos uma situação repleta de conflitos e contradições. Por um lado, o discurso da diferença se coloca de maneira cada vez mais universal na fala de educadores, políticos, psicólogos, lingüistas, fonoaudiólogos etc. Enfatiza-se que devemos enxergar a surdez como uma “diferença que precisa ser respeitada e aceita”. Por outro lado, acredita-se que a “diferença” surda seja definida em termos de uma deficiência física; que a criança surda possa ter uma estruturação identitária sólida sem a convivência com outros surdos em sua infância, entre outros vários equívocos que revelam as limitações desse reconhecimento pleno da identidade surda.
Contradição parecida pode ser observada no que se refere ao reconhecimento pleno da língua de sinais brasileira (libras). Por um lado, a libras é cada vez mais referida como uma língua natural pela sociedade brasileira. Os cursos se multiplicam pelo país, as pessoas se interessam em aprendê-la, e a língua ganha valor nos espaços públicos e privados. Entretanto, acredita-se que essa “língua” possa ser aprendida em cursos de um ou dois anos; que um professor polivalente possa ser capaz de, ao mesmo tempo, ensinar em português alunos ouvintes e, em libras, alunos surdos; que ser um ouvinte proficiente em conversações espontâneas na libras pressupõe a habilidade de saber interpretá-la, entre outros vários equívocos que revelam, novamente, as limitações desse reconhecimento da diferença surda.
É dentro deste contexto conflituoso e contraditório que propostas de educação de surdos têm sido reivindicadas e discutidas – o que de certa maneira é inevitável. Contudo, é importante chamar a atenção para a necessidade de aprofundar nossas visões sobre esses dois pilares da surdez: a língua e a identidade. De outro modo parece-me difícil pensar como uma educação de surdos de qualidade possa ser implementada no Brasil. Tal crítica se estende inclusive às propostas de ensino bilíngüe que, a despeito de minha simpatia, não estão isentas de se mostrarem aquém das necessidades e anseios da população surda e acabarem frustradas, caso seus planejadores não tenham claro o que a diferença lingüística e identitária dos surdos envolve e implica do ponto de vista educacional.
Esse reconhecimento da língua e identidade dos surdos não vai se dar da noite para o dia. São várias as barreiras que devemos enfrentar para que possamos alcançá-lo. Neste artigo, pretendo abordar algumas das questões mais gerais envolvidas nessa discussão, em primeiro lugar, refletindo sobre duas das possíveis razões pelas quais nossa sociedade encontra tanta dificuldade em ver o surdo efetivamente como um outro; e, em segundo lugar, refletindo sobre como certas atitudes sociais em relação à língua podem e devem afetar o estatuto lingüístico atribuído à libras.
Num segundo momento, a discussão se desloca para a questão do ensino bilíngüe para surdos. Primeiramente, buscarei justificar, com enfoque principalmente empírico, a necessidade desse tipo de política lingüístico-educacional para o caso dos surdos, refletindo neste contexto sobre as implicações da discussão sobre língua e identidade para a formação escolar da criança. Em seguida, discuto alguns desafios e especificidades que um ensino bilíngüe para surdos, diferentemente do ensino bilíngüe voltado para outras minorias lingüísticas, deve necessariamente considerar.
O artigo encerra com uma reflexão sobre as implicações da presente discussão para o modelo atual de inclusão – movimento que visa romper com a tradição de exclusão e discriminação de certos segmentos sociais na escola e na sociedade. O argumento central é o de que a inclusão, assim como toda política lingüística e educacional voltada para os surdos, tem buscado uma meta a qual todos compartilhamos: a de ver a comunidade surda socialmente integrada e exercendo efetivamente seus direitos e deveres como cidadãos brasileiros. A grande questão, então, são os meios que devemos construir de modo a se atingir esse fim. O presente artigo pretende trazer alguns subsídios básicos para o aprofundamento dessa reflexão.
Além do estereótipo do silêncio
No seu formidável conto The country of the blind, o escritor inglês H. G. Wells promove uma impactante desconstrução de nossas visões sobre normalidade e deficiência. Para isso, o autor constrói um mundo fictício peculiarmente distinto do nosso, de tal modo que várias das características às quais nós mais facilmente atribuímos o qualificativo “normal” fossem deslocadas para as margens da sociedade fictícia como algo “anormal”. A escolha do protagonista, Nunez, um jovem perfeitamente normal aos olhos de nossa sociedade mas não aos olhos da sociedade do conto, não poderia ter sido melhor: o escritor nos força a experimentar o gosto amargo da frustração e humilhação que o “outro”, o “diferente”, enfrenta ao perceber a incompatibilidade entre o modo como ele vê a si mesmo e o modo como a sociedade majoritária o vê. Adentrar o mundo fantástico do conto é uma experiência única, tendo em vista que, em nosso dia-a-dia, é muito difícil conseguirmos nos deslocar da nossa posição auto-centrada e nos aproximarmos efetivamente de um olhar sobre “o outro” que não seja mediado por nossos preconceitos e estereótipos.
Um olhar rápido sobre títulos de produções sobre surdez, por exemplo, mostra como é comum nos referirmos ao mundo surdo de maneira estereotipada, mesmo quando o nosso objetivo é o de abrir os braços para a diferença. Referências ao mundo do silêncio, seja isso interpretado positiva ou negativamente, revelam a nossa dificuldade de aceitar o surdo para além de nossos referenciais, uma dificuldade que uma atenção redobrada sobre o mundo surdo pode superar. Por exemplo, muitos surdos leves e moderados, protetizados ou não, são capazes de ouvir uma gama variada de sons, embora não tenham acesso às freqüências sonoras necessárias para se ouvir sons tais como a fala humana especificamente – o que afeta a sua relação com o mundo ouvinte de maneira mais direta. Até mesmo para os surdos congênitos severos e profundos, cuja audição é bem mais limitada, a idéia de “ausência de som” ou “silêncio” sequer tem um registro, como o tem para nós. A ausência de som, afinal de contas, pressupõe uma experiência sensível daquilo que, em contraposição, seja sonoro, experiência essa que surdos assim nunca tiveram ou que é para eles por demais ínfima para tornar-se significativa. A idéia de que o silêncio seja um conceito representativo do mundo surdo é um exemplo interessante de como até mesmo os defensores da diferença surda freqüentemente revelam uma limitação em seu reconhecimento dessa diferença.
Quando nos deparamos com um indivíduo pertencente a algum grupo étnico e/ou imigrante, tal como chineses, argelinos, bolivianos, entre outros, não duvidamos do fato de tais indivíduos possuírem identidades distintas da nossa. Um fato empírico é que essas pessoas tendem a conviver mais entre si, de modo que esse agrupamento deve ser resultado de uma identificação maior que sentem em relação aos membros de sua comunidade através da língua que falam, dos assuntos pelos quais mais se interessam, das roupas que usam, da religião que professam, entre uma série de outros aspectos. O conjunto desses elementos pode ser entendido como a tradição cultural desses indivíduos, que é edificada dentro de sua comunidade desde o nascimento da pessoa e que é constantemente negociada e re-significada a cada nova situação de enunciação cultural, seja na relação com os próprios membros de seu grupo, seja na relação com a sociedade majoritária.
Os surdos, enquanto grupo cultural, também possuem a sua tradição. Entretanto, em pelo menos dois aspectos essa tradição parece ter um sentido diferente daquele atribuído a grupos ouvintes: em primeiro lugar, no modo como essa tradição é edificada pelos surdos; e, em segundo lugar, nos elementos que compõem essa tradição e que a diferenciam das tradições presentes na sociedade majoritária. Esses dois aspectos, a meu ver, explicam em grande parte o modo como os surdos têm sido predominantemente vistos e tratados pela sociedade majoritária até os dias de hoje, bem como as dificuldades que eles enfrentam para superar essa visão e tratamento.
Sobre o primeiro aspecto, o caminho percorrido pelos surdos em sua constituição identitária se mostra particularmente distinto do caminho “natural” – se é que assim pode-se dizer – trilhado pelos chamados grupos étnicos. Ao contrário das minorias étnicas, a maioria esmagadora dos surdos não traz uma tradição cultural de seus berços, isto é, da família, que parece consistir, em nosso mundo ocidental, a instituição primordial de fomento cultural do indivíduo. Apenas cerca de cinco, de cada cem surdos, pertencem a famílias de pais surdos (Hall, 1989). O corolário dessa situação é que os surdos não são vistos pela sociedade majoritária ouvinte como um outro exatamente. Para o senso comum, os surdos são ouvintes deficientes, isto é, uma manifestação patológica, ou desviante, do padrão social hegemônico de normalidade.
As origens da perspectiva patológica da surdez se encontram já na antiguidade (Capovilla, 2001: 1480-1). Por séculos, desenvolveu-se a crença de que o indivíduo surdo não seria educável. Aristóteles afirmava que todo o processo de aprendizagem se dava pela audição. Na Idade Média, acreditava-se que os surdos não poderiam se salvar, uma vez que não podiam ouvir a palavra de Cristo. Grandes filósofos como Kant e Schopenhauer afirmaram que o surdo seria incapaz de exercer o raciocínio e fazer abstrações. Tais visões se fortaleceram na era moderna através de uma filosofia educacional que preconizava a oralização e o abandono da língua de sinais como único meio de promover a integração do surdo na sociedade
Nas últimas décadas, porém, tem sido questionado o fato de a defasagem na formação de muitos indivíduos surdos ser acarretada pela surdez em si. Levantando esse questionamento, Wilcox (1994) afirma que a surdez pode ser explicada sob dois ângulos distintos. Numa ótica patológica, o surdo é classificado como um ouvinte deficiente; o cerne dos problemas enfrentados em sua vida é físico, está dentro do indivíduo; e o objetivo principal da educação é remediar esse problema físico da melhor forma possível (i.e. fazendo uso de próteses, cirurgias ou submetendo-o a um treinamento de oralização), buscando adaptar o indivíduo surdo ao mundo ouvinte. Numa ótica sociológica, no entanto, o surdo não é um deficiente, mas uma pessoa que tem uma forma de ver o mundo distinta da sociedade majoritária; os problemas enfrentados em sua vida não são físicos e intrínsecos ao indivíduo, mas de natureza política e relacional, pois residem precisamente no ponto de contato do indivíduo com uma sociedade despreparada para recebê-lo; nesse sentido, o objetivo principal da educação é o de estruturar-se para receber o surdo adequadamente dentro das particularidades que ele apresenta, estimulando-o ao máximo em suas potencialidades. Assim, Wilcox afirma:
“Se aceitarmos a visão patológica da surdez, e também acreditarmos que o conhecimento é externo ao indivíduo, então será natural atribuir a condição física do aluno surdo como sendo a fonte de suas dificuldades … Entretanto, se acreditarmos que a surdez pode capacitar o indivíduo para uma visão de mundo diferente e que o conhecimento é construído ativamente, então poderemos esperar que as pessoas surdas venham a apresentar um entendimento de mundo diferente daquele apresentado pelas pessoas ouvintes” (p. 110).
O fato de a sociedade majoritária tratar a surdez como patologia traz algumas implicações para a busca de reconhecimento da identidade surda que precisam ser consideradas. Em nossa sociedade, grupos minoritários com profundas diferenças lingüísticas sempre coincidem com minorias imigrantes, isto é, estrangeiros cujo status lingüístico e identitário diferenciado é reconhecido, embora o fato de pertencerem a outro povo ou nação possa vir a ser fonte de discriminação. Frente aos surdos, no entanto, o olhar discriminatório da sociedade majoritária assume uma perspectiva distinta. Não há, nem nunca houve, qualquer polêmica quanto ao fato de os surdos nascidos no Brasil serem considerados membros da nação brasileira, tal como qualquer outro cidadão ouvinte nascido aqui. Embora isso pareça constituir-se numa vantagem, o problema acarretado por tais circunstâncias não é menor: não somente a língua e cultura surdas carecem de um status igualitário frente à sociedade ouvinte; elas sequer são reconhecidas em sua diferença.
De fato, diferentemente do que a sociedade ouvinte pensa, o quanto uma pessoa se vê e é vista por outros surdos como membro ou não da comunidade não depende tanto do grau de sua perda auditiva. Wilcox & Wilcox (1997: 65-6), referindo-se aos estudos de Baker-Shenk e Cokely (1980), apontam que são quatro os critérios principais relacionados a essa identificação: o critério lingüístico (i.e. o fato de a pessoa ter uma boa proficiência na língua de sinais do país); o critério social (i.e. o fato de a pessoa conviver com membros da comunidade cotidianamente, estabelecendo relações sociais, afetivas, profissionais etc); o critério político (i.e. o fato de a pessoa participar da luta política da comunidade pela conquista de direitos sociais indiscriminadamente restritos aos ouvintes) e o critério audiológico (i.e. o fato de a pessoa possuir uma perda auditiva em algum grau).
Estabelecer o fator lingüístico como o elemento identitário primordial para a constituição da comunidade surda e da tradição cultural que ela cultiva não parece ser, de fato, um exagero. Tanto o critério social quanto o político, por exemplo, parecem tomar o critério lingüístico como pressuposto. A convivência na comunidade surda, por exemplo, exige a habilidade para efetivamente participar de suas redes de interação, o que só pode ser realizado por pessoas proficientes em libras. Assim, quanto maior a limitação lingüística, maior a restrição de participação na vida social dos surdos. Igualmente, a vida política da comunidade surda está intimamente ligada ao histórico de discriminação lingüística que o grupo tem continuamente experimentado nos mais diversos âmbitos sociais – família, educação, saúde, entretenimento etc. – e a luta pelo reconhecimento lingüístico com o fim de superação dessa situação discriminatória.
De fato, a própria vivência junto à comunidade surda mostra que existe uma hierarquia desses critérios. Muitos intérpretes ouvintes são tão fluentes em libras e tão envolvidos na vida social e política da comunidade que se vêem e são vistos como totalmente integrados ao mundo surdo. Por outro lado, muitas pessoas com perdas auditivas que foram oralizadas na língua portuguesa por toda a vida, que não puderam ou não quiseram aprender a libras e que não se envolveram na vida social e política dos surdos, encontram grandes dificuldades para se integrar à comunidade – nos casos em que tais pessoas sentem alguma identificação tardia com os surdos sinalizados, o que nem sempre acontece. Tais conflitos de identidade só podem ser explicados considerando-se que o elemento crucial de definição da comunidade, em seus próprios termos e não sob o olhar estereotipado da sociedade majoritária, não é a sua condição audiológica, representada pela metáfora do silêncio, mas a condição lingüística. Nesse sentido, fica evidente o quanto o reconhecimento lingüístico pleno da libras, como uma língua natural marcantemente distinta do português, deverá contribuir para o reconhecimento da própria identidade surda.
Atitudes sociais em relação à língua de sinais
Quando consideramos todas as variantes lingüísticas utilizadas por comunidades de fala – as variantes de uma nação, e na nação, as de uma região, e numa região, as de grupos sociais, e nesses grupos sociais, as individuais, e no nível individual, as realizadas de acordo com as contingências imediatas da interação social – concluímos que a noção do que constitui uma língua se trata, na verdade, de uma grande abstração lingüística. Mais do que isso, concluímos que o critério lingüístico, em si, não basta, e que são fatores em grande parte extrínsecos à linguagem que, em última instância, determinam a existência ou não de uma língua aos olhos da sociedade.
Fishman (1972: 24-28) enumera, nesse sentido, quatro atitudes sociais que se mostram fundamentais para o reconhecimento de uma dada variante como língua: historicidade (i.e. a variante deve possuir uma trajetória histórica associada a algum movimento nacional ou ideológico); vitalidade (i.e. a variante deve ser empregada por um grupo social cotidianamente nas mais diversas funções diárias); padronização (i.e. a variante deve possuir uma relativa unidade num dado espaço social, resultado de sua aceitação como uma variante de maior prestígio); e autonomia (i.e. a variante deve ter um sistema lingüístico que se mostre independente de outras línguas já reconhecidas).
Essa abordagem, que se difundiu por boa parte da Europa e dos Estados Unidos (Lane et al., 1996: 53), acabou chegando ao Brasil na segunda metade do século XIX. No ano de 1855, um francês de nome Hernest Huet, herdeiro da tradição educacional francesa iniciada por l’Epée, seria convidado pelo imperador D. Pedro II para iniciar a educação dos surdos brasileiros. O meio de ensino consistia basicamente no uso de um alfabeto manual e de um sistema sinalizado derivado da língua de sinais francesa (LSF). Como não havia escolas de surdos no Brasil, Huet solicitou ao imperador a fundação de uma, e no dia 26 de setembro de 1857 seria então fundado, no Rio de Janeiro, o Instituto de Educação de Surdos-Mudos – atual Instituto Nacional de Educação de Surdos, o INES –, a primeira escola de surdos do Brasil.
A carência de pesquisas lingüístico-históricas sobre a libras não nos permite saber se havia uma língua de sinais utilizada por surdos no Brasil anteriormente à vinda de Huet ao país e à inauguração da primeira escola de surdos no Rio de Janeiro – embora seja plausível assumir que houvesse, em especial nos grandes centros urbanos onde o potencial de agrupamento dos surdos era maior. Apesar disso, no ano de 1910, a fundação da Associação Brasileira de Surdos-Mudos aponta para o estabelecimento de um grupo cuja língua e cultura iam, pouco a pouco, se firmando de maneira particular em meio à sociedade brasileira ouvinte. A hipótese mais provável é a de que – de maneira similar às propostas sobre a formação da língua de sinais americana (ASL) nos Estados Unidos (Lane et al, 1996) – a língua de sinais que hoje conhecemos como libras seja resultado de um processo de crioulização de pidgins, ou línguas de contato, emergentes nas antigas escolas de surdos, cujas fontes seriam o sistema sinalizado derivado da LSF, que fora importado na educação especial dos surdos brasileiros, e os sinais caseiros próprios de cada aluno, trazidos de diferentes localidades do país. Além disso, como já apontado, é plausível a hipótese de que esse processo tenha sido também afetado pela existência de alguma língua de sinais local, já existente entre alguns dos surdos brasileiros anteriormente à vinda de Huet.
Nas décadas que se seguiram à fundação do INES, os sucessivos diretores acabaram por demonstrar diferentes atitudes em relação ao uso da língua de sinais na escola. Alguns se mostraram mais abertos e admitiram seu uso irrestrito entre os alunos, bem como entre esses e os professores. Outros diretores mostraram-se mais conservadores e exigiram como meio de comunicação na escola, por exemplo, apenas o uso do alfabeto manual, auxiliado por um bloco de papel e caneta onde se pudessem escrever palavras e frases. Em 1910, contudo, a influência do Congresso de Milão acabaria se estendendo também ao Brasil, repercutindo na proibição definitiva do uso da libras nas escolas de surdos e implantando-se, a partir de então, a abordagem oralista de ensino de maneira generalizada.
A vitalidade das línguas de sinais, então, acabou por impulsionar o seu processo de padronização, bem como por dar início à conquista de sua autonomia. Isso se deu quando, na segunda metade do século XX, a forma de comunicação sinalizada que os surdos utilizavam a despeito de todas as discriminações começou a chamar a atenção da comunidade científica, o que resultou na publicação de uma série de estudos acadêmicos sobre as línguas de sinais. O passo inicial nesse empreendimento foi dado pelo lingüista norte-americano William C. Stokoe, através de seus estudos da ASL nos Estados Unidos, na década de 60. Sua principal contribuição foi a publicação do Dictionary of American Sign Language – em parceria com Dorothy Casterline e Carl Croneberg – livro que oferecia uma análise descritiva da ASL dentro do modelo estruturalista da lingüística de sua época, além de trazer um olhar sobre a surdez de um ponto de vista social e não mais patológico.
Esse estudo abriu as portas para uma rica área de conhecimento ainda não explorada. Nas décadas subseqüentes, pesquisas relacionadas com as diferentes línguas de sinais espalhadas pelo mundo aumentaram significativamente, principalmente nos países mais desenvolvidos da Europa e da América do Norte. A publicação de novos dicionários e gramáticas, primeiro com a ASL e mais tarde com outras línguas de sinais no mundo, conferia cada vez mais prestígio a essas línguas, que progressivamente passavam a ser vistas como línguas naturais, com autonomia não somente em relação às línguas orais, mas também em relação umas às outras.
Um trabalho decisivo, nesse sentido, foi a pesquisa desenvolvida por Klima e Bellugi (1979). O livro The Signs of Language viria consolidar a descoberta de Stokoe de que línguas de sinais como a ASL estavam estruturadas de acordo com os mesmos pilares das línguas naturais orais: a arbitrariedade/convencionalidade do signo e a dupla articulação. Klima e Bellugi mostraram que a modalidade gestual-visual impunha diferenças marcantes na estrutura fonológica e morfossintática das línguas de sinais, e que a aparente ausência de gramática nessas línguas não passava de uma incompreensão quanto aos seus mecanismos gramaticais peculiares. As línguas de sinais, comumente tidas como línguas artificiais, inventadas e baseadas nas línguas orais, ganharam a partir de então um forte impulso para alcançar sua autonomia enquanto sistemas lingüísticos independentes desenvolvidos naturalmente.
No Brasil, a ampliação da padronização e a conquista da autonomia da libras tiveram início mais recentemente, embora o atual reconhecimento da libras aqui revele avanços muitas vezes não vistos em países onde as pesquisas já estão bem mais avançadas. Uma frente de pesquisa precursora no Brasil foram os estudos conduzidos por e sob a coordenação de Lucinda Ferreira Brito no Rio de Janeiro, a partir da década de 80 (e.g. Ferreira Brito, 1984; 1988;1990; 1995).A partir daí, os estudos lingüísticos voltados para a libras ampliaram-se progressivamente e hoje caracterizam um campo em grande expansão.
A conquista de autonomia de línguas que foram por tanto tempo estigmatizadas, contudo, é lenta e gradual, e as repercussões de todas essas pesquisas nunca se dão de maneira plena ou imediata nos âmbitos sociais que estão além da academia ou mesmo do campo de estudos lingüísticos. Na educação, por exemplo, o primeiro redirecionamento na abordagem educacional de surdos que se seguiu a essas pesquisas, a chamada abordagem da comunicação total, não implicou ainda uma aceitação completa da língua de sinais. De acordo com essa abordagem, o objetivo de desenvolver a língua oral nos surdos poderia ser alcançado não apenas através do treino intensivo dos alunos com a língua oral, como no oralismo, mas por todos os recursos possíveis, inclusive os sinais. Em geral, permitia-se nessa abordagem, desde a fala, passando por uma série de sistemas artificiais de sinais baseados nas línguas orais, até as línguas de sinais propriamente ditas. O objetivo era o de abrir tantos canais de comunicação quantos fossem possíveis na interação com os alunos surdos (Capovilla, 2001: 1482-3).
A grande contribuição dessa abordagem, no entanto, não foi a eficácia de sua aplicação, mas principalmente o fato de tornar os profissionais envolvidos na educação de surdos mais sensíveis à necessidade de se comunicar com seus alunos por meio de sinalização. No âmbito prático, na verdade, ficou evidente que esse avanço ainda estava muito aquém do ideal. O crescente volume de pesquisas sobre a estrutura e o léxico das línguas de sinais destacava cada vez mais a autonomia dessas línguas, o que tornava mais e mais patente a incompatibilidade estrutural e lexical entre as línguas orais e as línguas de sinais. Tal constatação demonstrava ser inviável uma prática típica da comunicação total, de empregar os sinais concomitantemente à fala oral. Foi quando tais fatos começaram a se tornar mais patentes, entre as décadas de 80 e 90, que se começou a considerar mais seriamente a pertinência de uma política de ensino bilíngüe para surdos.
Esse quadro geral sobre a historicidade, vitalidade, padronização e autonomia da libras constitui um retrato sociolingüístico da comunidade surda bastante introdutório. Muitas pesquisas são necessárias para aprofundar o nosso conhecimento sobre vários dos aspectos que cercam a questão, tais como: o contexto sócio-histórico em que a libras se originou e se consolidou; as influências de outras línguas ou políticas educacionais sobre a gramática da libras; as características gramaticais, lexicais e discursivas da libras num recorte sincrônico; o repertório das variantes que coexistem em diferentes círculos sociais no âmbito nacional, entre outros vários aspectos. Somente com tais estudos, poderemos ampliar nossas bases de reivindicação para uma inclusão efetiva da libras na educação de surdos, através de uma política de ensino que reconheça a legitimidade da língua e identidade surdas de maneira plena.
O caminho rumo a uma educação bilíngüe para surdos
As promessas da educação bilíngüe
Pesquisas têm evidenciado que a proposta de ensino bilíngüe para minorias se mostra não somente a alternativa mais ética mas também a mais eficaz no sentido de otimizar o desenvolvimento lingüístico, cultural, cognitivo, psicológico e, conseqüentemente, o potencial escolar de crianças de grupos minoritários, como é o caso dos surdos. Embora pesquisas sobre o assunto ainda sejam escassas no Brasil, diferentes modelos de educação bilíngüe têm sido investigados nos locais em que eles têm sido experimentados – os Estados Unidos sendo um dos principais locais –, revelando de maneira consistente os benefícios que podem ser alcançados adotando-se tal política para a educação de minorias.
Antes de trazer essas pesquisas para discussão, contudo, uma distinção crucial deve ser feita sobre o contexto em que elas se inserem: a diferença entre o chamado bilingüismo de elite e o bilingüismo popular (Paulston, 1980). Sabemos que nunca houve qualquer obstáculo político e educacional para a promoção do bilingüismo para as classes média e alta; pelo contrário, a opção pela aquisição de uma segunda língua (L2) por pessoas desse grupo social foi sempre vista com muito bons olhos pela sociedade majoritária. Uma situação bastante diferente se coloca na situação social de grupos minoritários. Para eles, os obstáculos políticos e educacionais para a aceitação social de um ensino bilíngüe colocam-se de maneira constante. E tal fato ocorre justamente num contexto social em que, ao contrário do anterior, o bilingüismo não é uma opção mas uma necessidade de sobrevivência, uma vez que a língua da sociedade majoritária, fundamental para o sucesso acadêmico e profissional, difere da primeira língua utilizada pelo grupo (L1). È nessa última condição, e não na primeira, que os surdos se encontram, daí a necessidade de que as pesquisas aqui reportadas devam ser lidas num contexto social de bilingüismo popular.
De acordo com Krashen (1981), é clara a implicação dessa teoria para o ensino de minorias. Se todo estudante de línguas deve ser exposto a fontes de input compreensível, conclui-se que isso não pode ser conseguido simplesmente colocando-se a criança em idade escolar para ouvir uma língua que ela não conhece – e que se apresenta para ela como puro ruído. Ao contrário, deve-se oferecer à criança instrução na língua nacional através de aulas que empreguem metodologias de ensino de L2, onde tanto o contexto da instrução quanto o nível lingüístico do professor são trabalhados de modo a tornar o input sempre significativo para o aluno. Isso não quer dizer que as matérias curriculares devam ser postergadas para os anos mais avançados de escolarização, esperando que o aluno tenha um bom domínio da L2; significa, sim, que essas matérias devem ser ministradas desde o início na própria L1 do aluno. Vendo o professor utilizar uma língua que ele compreende e com a qual ele se identifica, cresce a possibilidade de a ansiedade desse aluno ser minimizada e a sua auto-estima fortalecida, o que contribuiria para aumentar sua motivação. Além disso, o progressivo domínio das matérias acarretaria um desenvolvimento da cognição e do conhecimento prévio dessa criança que, em última instância, contribuiriam para a aquisição da L2. Dando força às suas hipóteses, Krashen traz dados de pesquisas empíricas de outros pesquisadores que se mostram consistentes com tais predições.
Apesar dessas evidências apontarem para a validade do ensino bilíngüe, é preciso ter em mente que diferentes programas bilíngües apresentam diferentes características e circunstâncias, aspectos esses que precisam ser considerados em conjunto na avaliação de cada um desses programas. Um desses aspectos, analisado por Cummins (1998), refere-se aos diferentes tipos de ensino bilíngües. O autor aponta, com base num levantamento de pesquisas, que muitas das apreciações negativas sobre ensino bilíngüe na literatura educacional se referem a programas bilíngües que não buscam de fato desenvolver a L1 dos estudantes. Isso significa que, mesmo admitindo a importância de se manter a L1 dos alunos como meio de instrução no período inicial de escolarização – evitando as conseqüências negativas da mudança lingüística destacadas por Baral –, tais programas ainda aspiram ao monolingüismo como meta final, atribuindo à L1 dos alunos um papel apenas transitório e adaptativo.
Do ponto de vista lingüístico, essa proposta de ensino bilíngüe, chamada modelo bilíngüe de transição, está fundamentada numa suposição sobre a aquisição de duas línguas, que também é sustentada pelos programas de imersão e que Cummins afirma ser contraditória aos dados empíricos de pesquisas. Trata-se da crença de que o tempo investido na L1 em nada contribua, ou até mesmo seja prejudicial, atuando como obstáculo para a aquisição de proficiência na L2, e que, por essa razão, a L1 deva ser abandonada tão logo quanto possível. Contrapondo-se a essa idéia, Cummins propõe o conceito de proficiência subjacente comum. De acordo com esse conceito, desde que a instrução na língua materna seja eficiente, a transferência de habilidades da L1 para a L2 vai ocorrer, bastando apenas que o aluno seja suficientemente exposto a essa L2 (na escola ou na comunidade) e que tenha motivação para esse aprendizado (p. 3). Com base nessa conclusão, Cummins propõe então um modelo bilíngüe de manutenção, isto é, um ensino que invista na instrução da L1 de maneira tão ou mais incisiva do que é investido na instrução da L2 – proposta também favorecida por autores como Fishman (1979), que se refere a esse tipo de programa como educação bilíngüe completa.
Do ponto de vista cognitivo, os argumentos de Cummins em favor da necessidade de manutenção e desenvolvimento da L1 encontram suporte teórico principalmente nos trabalhos dos psicolingüistas cognitivos. Segundo Saville-Troike(1991), a aquisição e o desenvolvimento da competência na L1 facilita o processo de aquisição da L2 em parte por equipar a criança com uma variedade de frames, roteiros e esquemas, que permitem a ela inferir os significados de situações similares em uma L2, mesmo que essa seja uma língua ainda desconhecida. Tais frames, roteiros e esquemas são representações abstratas do conhecimento e se desenvolvem a partir de, e que são trazidos para, os processos comunicativos interpessoais. Essas representações são estruturadas a partir de situações recorrentes (e.g. manipular objetos, ler um texto, ir a um restaurante etc) e envolvem conhecimento de partes e relações, do cenário, da identidade e função dos participantes, de seqüências de atividades esperadas, de regras de interação e normas de interpretação, entre outras. Quando os alunos começam a aprender uma L2, eles nunca aprendem cada conceito a partir do zero; eles os interpretam em termos dessas representações que já possuem, fazendo eventuais ajustes a depender da novidade com que os novos esquemas se apresentam a eles. Ao tornar as situações de interação bem mais significativas, a experiência prévia rica na L1 permite, então, uma otimização na aquisição e no desenvolvimento da L2.
Experiências de ensino bilíngüe com surdos também têm sido realizadas em alguns países. Os primeiros a fazer uma mudança em direção ao ensino bilíngüe para surdos foram os países escandinavos. Já em 1980, a Suécia assumiria uma posição dianteira em relação ao restante do mundo, reconhecendo a língua de sinais sueca como língua oficial e nacional ao lado do sueco; e, em 1983, adotando o bilingüismo como a política educacional oficial para o ensino de surdos naquele país. Na Dinamarca, a conquista definitiva do ensino bilíngüe só seria alcançada dez anos mais tarde, em 1992, quando o ensino da língua de sinais dinamarquesa foi introduzido como matéria oficial em todas as escolas públicas de surdos. Adotando tais políticas, os países dessa região já puderam demonstrar sinais de avanço em relação aos demais no que se refere ao desempenho alcançado pelos alunos surdos em sua escolarização.
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