Por Luis Felipe Kojima Hirano 
Ciências Sociais – NAU USP

O diálogo entre Antropologia e História, por vezes conflituoso, geralmente rende resultados frutíferos. É, talvez, dentro desse diálogo, que podemos encontrar uma das chaves de leitura possível do recém-lançado livro Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil da historiadora Ermínia Silva. Resultado de uma pesquisa apresentada como tese de doutorado ao departamento de História Social da Unicamp, esse livro descreve de modo pormenorizado o processo de organização e produção daquilo que ficou conhecido como circo-teatro, nas décadas 1870 a 1910, tendo como fio-condutor a trajetória do multi-artista Benjamim de Oliveira. O mergulho num extenso leque de fontes como jornais, revistas, depoimentos, além da bibliografia especializada, constitui um retrato rico das diversas relações tecidas entre circenses e os diferentes campos de produção cultural tais como a música, teatro, cinema e a crítica de arte, trazendo uma nova perspectiva aos estudo sobre a dinâmica artística em fins do século XIX e início do XX. 

O pressuposto da autora, tão atual quanto pertinente para se entender a dinâmica cultural desse período, é que o circo, longe de uma entidade fechada em suas tradições, conforma-se em sua formação como espetáculo híbrido, agregando diversas modalidades artísticas. Não foram raras, porém, as discussões em torno dos elementos que as novas trupes incorporavam. Desde seu nascedouro, na Europa no século XVIII, a adoção da comicidade falada nas pantomimas e momices dos palhaços em companhias circenses causou debates acirrados em favor daquilo que certos críticos e artistas defendiam como «circo puro»: apenas habilidades físicas e destreza com animais, sem uso da palavra, eram válidas. 

Mais do que tomar partido nesse debate, a autora, compreende a arte circense de modo ampliado, como fenômeno que percorreu e (ainda percorre), durante a sua formação, o tenso diálogo entre a preservação de suas tradições e a incorporação de novas tecnologias. Nesse sentido, segundo a historiadora, «os circenses» devem ser compreendidos como um grupo que articula «uma estrutura, a princípio entendida como um núcleo fixo, com redes de atualização, envolvendo matrizes e procedimentos em constante reelaboração e ressignificação» (p. 25). É essa noção flexível do métier circense que permite à autora perscrutar a formação do circo de modo diverso, em suas mais variadas relações com outros campos artísticos. 

Por meio de um breve histórico sobre o surgimento do circo, Ermínia Silva, demonstra que as famílias circenses quando aportaram no Brasil, em meados do século XIX, já carregavam em suas bagagens um espetáculo múltiplo, com números eqüestres, acrobacia, ginástica, teatro – cenas cômicas, operetas, pantomimas, variedades, entre outros. Em solos brasileiros, ao mesmo tempo em que o circo preservava a estrutura advinda da Europa, agregava e reinterpretava os novos elementos locais.

É nesse contexto, de início da arte circense no país, que um negro nascido forro fugiu de sua cidade natal com Circo Sotero, transformando-se, alguns anos depois, em um famoso ator, palhaço, cantor e instrumentista, entre os maiores do Brasil. A trajetória de Benjamim de Oliveira, mais do que fruto de uma genialidade, era expressão de uma educação da prática circense denominado pela autora de processo de «formação/socialização/aprendizagem». Nesse processo, crianças na mais tenra idade aprendiam as diversas modalidades artísticas por meio da transmissão oral de práticas e saberes. Sem desmerecer a grandiosidade de Benjamin, a historiadora, demonstra, que trajetórias similares à dele foram inúmeras.

Caminhos esses traçados não só por aqueles que nasciam nos picadeiros, mas por pessoas sem tal tradição familiar, uma vez que o trânsito entre circenses e não circenses no circo, teatro, música, cinema, etc. era contínuo. Além de Benjamin, que no início do século XX, já havia produzido seis discos com modinhas e lundus  e atuado no filme Os Guaranis, havia também Eduardo das Neves compositor, cantor e palhaço, que realizou turnês com o circo para divulgar sua música. O picadeiro, ademais, era um grande divulgador das vogas culturais daquele período e que em sua itinerância levava de um lugar para outro as peças recém encenadas e as canções de grande sucesso. 

As relações com as autoridades, empresários do ramo e críticos da época, também eram laços importantes para as companhias de circo. Malgrado os ataques frontais de alguns críticos, preocupados com a formação de um teatro nacional e com o estímulo à civilidade dos espectadores, alguns cronistas, como Arthur de Azevedo, foram, aos poucos, cedendo aos encantos da teatralidade circense. Azevedo, que antes o criticara, faria grandes elogios a Benjamin. Como era de se esperar, este e outros críticos tinham um bom argumento para as idas ao circo: diziam eles que Benjamim e seus colegas não mais atuavam como palhaços, mas como verdadeiros atores de um «teatro digno». Informação, porém, que parece não proceder, pois Benjamim continuaria com suas momices até mais ou menos o decênio de 1930. Enfim, como se diz, «a história é feita de muitos esquecimentos». Afirmação mais do que apropriada quando se trata da história do circo, silenciada em muitos casos.

Famigerado também é o episódio de Marechal Floriano Peixoto que, apaixonado pela comicidade circense, ao que parece contribuiu com o Circo Spinelli, onde Benjamim era responsável por toda direção artística. Inclusive, um de seus filhos era ginasta e atleta deste circo. Cartazes da época anunciavam a grande atração: um homem hercúleo enfrentaria feras enormes. Seu nome: «José Floriano Peixoto, filho do Marechal de Ferro»(p.135). 

São muitas as histórias que se cruzam nesse livro, demonstrando que dicotomias tais como popular/erudito ou tradicional/moderno fazem pouco sentido frente a uma pesquisa minuciosa que descreve os atores sociais indo de um pólo a outro ou permanecendo em muitos, na complexa dinâmica cultural da época. Ao contrário do que se imagina, o circo não era uma entidade fechada, tampouco exclusiva das camadas populares. Como se vê nesse livro, havia um diálogo intenso entre os vários campos artísticos, e seu público era vasto e heterogêneo. Assim, as próprias categorias de circo e artista circense devem ser relativizadas, no entender da autora. 

Em tempos nos quais as noções de processo e rede se tornam privilegiadas na análise antropológica, a leitura deste livro pode trazer muitos insights para se pensar não apenas o circo mas, também, outras manifestações artísticas na atualidade. A voga do circo nos últimos tempos, com vinda ao Brasil do aclamado Cirque du Soleil, o surgimento de inúmeras escolas de circo, a formação de trupes de artistas provenientes das mais diferentes tradições e o uso da circoterapia no ambiente de trabalho, entre outras manifestações que expressam a «teatralidade circense» (para utilizar o feliz conceito de Ermínia Silva), trazem à tona diversas questões acerca das transformações que o circo, o teatro, a dança e outras artes vêm sofrendo. Questões essas que contribuem para a reflexão sobre as redes que articulam os diferentes ramos artísticos com a imprensa, com o governo e a iniciativa privada. Enfim, um olhar atento ao passado permite uma perspectiva renovada desse imenso campo da produção cultural em nossos dias.

Por último, vale destacar aspectos da bela edição do livro, com ilustrações raras dos artistas circenses, além de várias reproduções das propagandas em jornais que divulgavam os espetáculos. Há, também, no final do livro, um extenso catálogo com as peças encenadas nos circos entre 1834 a 1912, servindo de fonte para outras pesquisas. Convém sugerir, ainda, para aqueles que se interessam pelo tema, o website Pindorama Circus , coordenado pela própria autora do livro. Nele há um banco de dados que disponibiliza uma série de artigos sobre circo, além da tese de mestrado de Erminia Silva, O circo: sua arte e seus saberes, na integra.