“Este livro é a edição sem retoques dos meus diários de campo nas duas expedições que fiz, entre 1949 e 1951, às aldeias dos Urubus-Kaapor. Eu tinha, então, 27 anos, o vigor, a alegria e o elã dessa idade, de que tenho infinitas saudades. Enfrentava sem medo marchas de mil quilômetros, temporadas de dez meses (…). Meus diários são anotações que fiz dia-a-dia, lá nas aldeias, do que via, do que me acontecia e do que os índios me diziam. Gastei nisso uns oito grossos cadernos, de capa dura, que ajudava a sustentar a escrita. Porque índio não tem mesa. Muitas vezes escrevia sobre minhas pernas ou deitado em redes balouçantes. Você imaginará a letra horrível que resultava disso”.
Assim começava o mais recente livro de Darcy Ribeiro, “Diários Índios”, uma bela edição, mais de seiscentas páginas com dados de campo, relatos das viagens e seus incidentes, descrições de ritos, desenhos, fotos, diagramas de parentesco e até rabiscos feitos pelos próprios índios. A pergunta é: e daí? O conhecido antropólogo já não publicou o resultado de suas pesquisas em outras obras, mais bem elaboradas, de acordo com os cânones da academia? A edição destas notas traz alguma nova contribuição para o conhecimento antropológico, ou se trata apenas de uma (justa) homenagem ao ativo e polêmico intelectual? E, em termos mais gerais, qual a importância e lugar dos cadernos de campo na atividade do antropólogo?
Na verdade soa meio deslocado, old-fashionable mesmo, falar em caderno – principalmente em tempos de Internet, cyberspace e sites; o pesquisador tem hoje à sua disposição, como instrumentos de trabalho, os versáteis, portáteis e potentes lap-tops ou notebooks equipados com modem, ligados on-line a webs, isso sem falar nos já familiares e práticos gravadores, filmadoras, câmaras fotográficas. Neste contexto, o caderno de campo mais parece um artefato jurássico, vestígio dos tempos heróicos da disciplina. Aqui você pode ler algo sobre o que é nau?
Sim, porque está se falando em caderno mesmo, o de 90 folhas, por exemplo, com espiral, formato 100 x 140 mm., próprio para a jaqueta ou o bolso de trás da calça jeans. Equipamento indispensável na mochila do etnógrafo, seja ele marinheiro de primeira viagem ou velho lobo do mar, vem sendo usado como depositário de notas, impressões, observações, primeiras teorizações, mapas, esboços, desabafos, entrevistas e garatujas de informantes. Foi o que ocorreu com Darcy Ribeiro e com Bronislaw Malinowski – para citar dois casos ilustres – e assim continua ainda hoje com antropólogos de toda as estirpes, no campo, na cidade, na aldeia.
Pode-se discutir se o caderno, em pessoa, ainda é bom para escrever; mas, parafraseando Lévi-Strauss, sem dúvida é bom para pensar: permite retomar a especificidade do próprio métier do etnógrafo.
Um antecedente famosoEm 1967 foi publicado, despertando imediatamente ácidas polêmicas, o livro A Diary in the strict sense of the term, edição póstuma do diário de Malinowski, por decisão de sua esposa. Escrito originalmente em polonês, língua materna do antropólogo, cobre parte de seu período de trabalho de campo (dezenove meses, entre 1915 e 1918) junto aos mailu e aos trobriandeses, na Melanésia. Redigido na forma de diário íntimo, consiste basicamente no registro de seus estados de ânimo, preocupações com a saúde, impressões e expressões (nem sempre elogiosas) sobre os nativos e sobre as condições do trabalho – a solidão, as leituras, os encontros, – e também o mau-cheiro, o barulho, as tentações.
Produziu o maior frisson no meio, provocando indignadas reações de ex-alunos e muitas dúvidas quanto à oportunidade e validade da iniciativa. Das inúmeras resenhas e comentários ficou um consenso: em termos de método ou teoria pouco acrescentou ao que já se conhecia da obra de Malinowski, expressa em suas monografias. Seja como for, o “Diary…” permitiu revelar o lado humano, vulnerável, do autor e da real situação de pesquisa.
Já os “Diário Indios”, de Darcy Ribeiro é mais caderno de campo do que diário íntimo. Contém dados e informações, ainda que não a totalidade do material coletado. Mantém a ordem cronológica das expedições e a do deslocamento espacial e, nesse sentido, aproxima-se do gênero relato de viagem. Diferentemente do texto de Malinowski, não só foi publicado com sua autorização, mas cuidadosamente editado, apesar da declaração inicial de que contém “sem retoques” o material original.
Trata-se de dois estilos, bastante diferentes, que deixam antever a versatilidade do gênero; os cadernos de campo de todo antropólogo contêm elementos, em graus variáveis, de ambos os modelos. Entretanto – polêmicas e comparações à parte – cada qual, a seu modo, dá a dimensão do que é o processo de imersão que caracteriza a pesquisa etnográfica: trata-se de uma experiência que nenhuma outra abordagem proporciona pois tem como pressuposto o contato com o Outro, nos termos – espaço, temporalidade, códigos – deles; é uma experiência-limite, que transforma uns e outros. Mas há outras coisas, como se verá a seguir, que os cadernos ensinam.
A jornada antropológica
Raymond Firth, quem fez as duas Introduções ao “Diary …”., uma quando do lançamento do livro em 1967 e a segunda para a edição de 1989, nesta última reconhece que, originalmente, havia encarado os diários como uma espécie de chave para a interpretação da personalidade de Malinowski e, a partir daí, de seu trabalho. No entanto, para antropólogos mais jovens que jamais tiveram contato com o autor dos “Argonautas…”, o interesse do livro estaria muito mais em obter dele uma ajuda ou maior confiança para o entendimento do que acontece na sua própria experiência de campo.Firth refere-se a um desses antropólogos, Anthony Forge, segundo o qual do “Diary…” pouco se aproveita em termos metodológicos: na verdade ele ilustra os dilemas do pesquisador em campo, como o de manter a própria identidade em meio à dinâmica da sociedade local. A solidão do antropólogo, aí, é de uma espécie particular, e nesse contexto o diário não teria sentido senão para aquele que o redigiu, produto de um estado de suspensão entre duas culturas.
O caderno de campo, entretanto – para além de uma função catártica – pode ser pensado também como um dos instrumentos de pesquisa. Ao registrar, na linha dos relatos de viagem, o particular contexto em que os dados foram obtidos, permite captar uma informação que os documentos, as entrevistas, os dados censitários, a descrição de rituais, – obtidos por meio do gravador, da máquina fotográfica, da filmadora, das transcrições – não transmitem.
Tomando como referência a expressão com que Geertz (1983) caracteriza os dois momentos constitutivos da prática etnográfica, experience-near e experience-distant, pode-se dizer que o caderno de campo situa-se justamente na intersecção de ambos: ao transcrever a experiência da imersão, corresponde a uma primeira elaboração, ainda vernacular, a ser retomada no momento da experience-distant. Quando já se está “aqui”, o caderno de campo fornece o contexto de “lá”; por outro lado, transporta de certa forma para “lá”, para o momento da experience-near, a bagagem adquirida e acumulada nos anos gastos “aqui”, isto é, na academia, entre os pares, no debate teórico.
No entanto, apesar de indispensável no trabalho de campo, e de seu caráter de instrumento usado tanto nos primeiros contatos, como em projetos mais alentados, não se pode evitar, associada ao caderno, uma certa conotação de “coisa de iniciante”: é algo descartável, opõe-se a livro – este sim, “definitivo” – e a relatório, que vai ser lido e avaliado. Caderno evoca e supõe um estado de aprendiz, daquele que, por nada saber, tudo anota, não deixa passar nada.
E é justamente por esse atributo que o caderno de campo, mais do que qualquer outro objeto do kit, representa e simboliza a prática e a atitude fundamental do antropólogo. “Há muitas possibilidades na mente do principiante, mas poucas na do perito”, diz o mestre Shunryu Suzuki, em Mente Zen, mente de principiante (1994: 20). Diante da cultura dos outros, somos todos aprendizes e, quase sempre, aprendizes desajeitados. Mariza Peirano refere-se a esta atitude quando mostra que, longe do “impacto existencial e psíquico da pesquisa de campo, o material etnográfico se torna frio, distante e mudo” (1995:51). E é do confronto de teorias e visões de mundo de nativos e antropólogos que surgem aqueles “resíduos reveladores” a que se refere Peirano e dos quais o caderno de campo é o primeiro testemunho.
Começamos com Darci Ribeiro, finalizamos com o diário de Malinowski, do qual, como não poderia deixar de ser, a ótica pós-moderna também tirou sua casquinha: para James Clifford, que considera “Os Argonautas…” e o “Diary…” como um único texto expandido, a importância deste último reside no fato de constituir “um inventivo texto polifônico, e um crucial documento na história da antropologia porque revela a complexidade dos encontros etnográficos”. Falar em encontro etnográfico é falar numa particular aventura marcada pelo duplo esforço, de uns para contar, e de outros para compreender, tal como – na leitura de Ítalo Calvino, em As Cidades Invisíveis – protagonizaram Marco Polo e Kublai Khan – seu objetivo: a busca de um código compartilhado para entender e apreciar as diferenças entre as inúmeras cidades do vasto império e que, no fundo, eram uma só. Para mais informações, você pode sempre contatar n-a-u.org.
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