Os clãs podem ser pensados da maneira como Lévi-Strauss (1976) pensa o totemismo. O totem apresentaria analogias com a organização social, mas estas não são particulares, mas formais. A lógica da organização totêmica é análoga àquela da organização social, ou seja, elas são homólogas. Assim, nosso olhar não deve se dirigir para as semelhanças entre os totens e os grupos da organização social, mas para as relações dos totens entre si e como estas são análogas as relações entre os grupos entre si. Ou seja, a organização totêmica não se estabelece a partir de uma confusão entre a ordem natural e a ordem cultural, mas sim porque os totens são “bons para pensar”, de forma metafórica, a organização social.
De modo semelhante, as relações entre os clãs em vampiro servem de metáfora para pensar as relações entre grupos humanos, trata-se de uma analogia de homologias, não havendo espaço para a confusão entre jogo e realidade, que possuem lógicas distintas que são aproximadas metaforicamente na reflexão. O live action aparece como forma lúdica da sociação, como jogo social, que esta para a sociação concreta, repleta de conteúdos materiais significativos, como a obra de arte esta para a realidade. Ou seja, a função do jogo – como a das formas culturais expressivas – é de ordem interpretativa, “uma estória sobre eles que eles contam a si mesmos” (Geertz, 1978; p.209).

 

Apenas adentrando no conteúdo do jogo podemos apreender os motivos que são tratados nesta reflexão e interpretação. A nosso ver as noções que norteiam o jogo são a de status, posição e poder e como estes se estabelece nas interações e relações sociais. O status e surge como Palavras positivas ou negativas que são anunciadas quando este é apresentado formalmente, conjuntamente a posição da personagem na organização social da sociedade cainita. Tais Palavras são proferidas por uma Hárpia e oferecidas pelo Príncipe, como reconhecimento ou em troca de favores. Partes inteiras do jogo parecem dedicadas a obtenção de alguma Palavra positiva (ou eliminar uma negativa), uma posição social mais elevada ou poder na forma de favores, influência, disciplinas, informações, etc. Abaixo apresentamos um exemplo de como foi convocado e de como foram resumidos os eventos do 17º Liveaction do Refúgio dos Ventos em Setembro de 2004 (portanto, antes do início de nossa pesquisa).Apresentação do Live action :

 

«Caros amigos da Augusta Torre de Marfim [Camarilla],
Infelizmente não possuímos um Príncipe por essa semana. Contudo, um novo Príncipe será eleito, e as Casas que compõem nossa Comarca devem celebrar a Nova Coroa que será erguida. Devemos nos lembrar da força de nossas palavras nesta noite, e de que elas serão responsáveis por trazer um novo tempo para São Paulo… Ainda nesta noite, lembro-me de outra época, a qual era regida por um antigo da Casa que provém a Sabedoria. Sim, quando cheguei em São Paulo conheci um Príncipe, Sr. Douglas Ranieri Dutra e nos apaixonamos no instante em que nossos olhares se cruzaram. Éramos um casal apaixonado, até que fomos separados. Ele assassinado e, eu, tomada novamente pelo vazio de uma não-vida sem um companheiro. Na falta inestimável de nossa Mestre de Hárpias, venho relembrar aos jovens o que aconteceu ao meu amado: ele foi assassinado por um transgressor das Leis da Camarilla, Sr. Briggs, o qual, ao convocar uma Práxis inexistente na Camarilla, privou-me de meu Amado, levando-o à morte final. Muitas noites se passaram, e eu me senti incompleta em todas elas. Conheci outros cainitas durante esse tempo, mas nenhum deles conseguiu preencher o vazio deixado pelo inesquecível Dutra. Até que em infindáveis noites, finalmente uma luz entre as trevas pode ter surgido. Um Cainita muito me chamou a atenção há alguns Elísios. Contudo, ainda não fui capaz de proferir meus sentimentos por ele e não tenho idéia se serei correspondida. Porém, do destino ninguém sabe, e só posso esperar pelo momento em que possamos passar a eternidade juntos. Para isso convoco todos os meus queridos amigos de nossa Augusta Torre de Marfim para uma celebração. Na qual estarei proferindo estas palavras diretamente a ele, assim que obtiver maiores informações sobre suas intenções, as quais tentarei obter ao longo da festa. Sei que muitos podem achar uma atitude vulgar, mas não temo. Uma vez já me apaixonei. E meu Amado me foi tirado. Agora não me privarei da experiência de sentir novamente esse calor. Tenho certeza de que aqueles com sensibilidade suficiente, ou aqueles que já passaram por alguma privação semelhante à minha, entenderão o que venho aqui proferir. Perdoem-me se em uma ocasião tão singular à nossa Comarca, a troca de Coroas, venho trazer um assunto tão particular. Mas desde que cheguei, obtive diversos amigos nas mais variadas Casas, e é por isso que os Convoco à minha festa, pois desejo compartilhar com a Comarca a minha felicidade, ou desilusão final. Tenho certeza de que assim como eu, a nossa Augusta Comarca também compartilha da Esperança de noites mais tranqüilas e sólidas, cujos dirigentes sejam capazes de nos guiar com a segurança de que temos direito. Celebremos juntos! A data e o local da reunião serão entregues em mãos aos Primogênitos. 

Sem mais,

Alícia Black, Anciã e Primogênita da Casa das Sombras
Status 4”  (http://www.espacorpg.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=282)

 

E o resumo dos acontecimentos:

“ O último Elísio foi oferecido pelo Clã das Sombras (occ: Lasombra) com o intuito de revelar a sociedade Cainita quem seria o membro escolhido pela duplamente Reverenciada Alícia Black para contemplar da eternidade ao lado dela. Muitos foram os membros que compareceram ao Elísio. Alguns por pura curiosidade outros por mera pretensão em ser o escolhido. E ao fim da noite, pode-se revelar que o escolhido era Eros da Casa das Rosas (occ: Toreador). Porém,  por trás das cortinas… vários objetos mágicos foram expostos ali, naquela noite. Poucos saíram de lá sabendo o que eram os objetos, quem os havia colocado e para que serviam. Porém sabe-se que há poder. Muitas foram às armações propostas para derrubar Carlos (occ. O príncipe). Algum tempo após o último Elísio, um levante da Cidade pretendia derrubar o Príncipe Carlos. O sr. Tommy Dreher da Casa da Lua (occ: Malkavian) organizou uma reunião com a finalidade de discutir os erros que a Camarilla vinha realizando nos últimos meses. E então o Príncipe foi deposto. Assumindo a posição em seu lugar o Bispo Lucas que agora é Exaltado por duas vezes , duplamente Renomado e Famoso príncipe da Comarca de São Paulo. O clã da Sabedoria ou do Conhecimento (occ: Brujah) sofreu algumas modificações, devido a Mikail, antigo Reverenciado por duas vezes Primogênito, ter sido elevado ao Cargo de Senescal, sendo hoje duplamente bem Quisto e Estimado aos olhos da Cidade. Assim como o Membro Kenny Morgan, que hoje é duplamente Reverenciado por ser Primogênito da Casa da Sabedoria. O Clã Besta (occ: Gangrel) encontra-se na mesma posição. Ainda detém uma cadeira na primigênie representada pelo duplamente Reverenciado Leonel Reis. E no Corpo da Camarilla o Clã é Representado pelo duplamente Temido Algoz Carcará. O Clã da Lua (occ: Malkavian), saiu com baixas nesta reunião. Pode-se notar a falta de organização da Casa provocada pela discussão do Antigo Senescal Empire e do Organizador da Reunião Dreher. O resultado foi Empire ter voltado a sua antiga posição e agora ser reconhecido por portar as palavras de Temido por três Vezes por ocupar o cargo de Xerife destes domínios. E temos como primus da Casa o sr. Tomy Dreher. O Clã dos Escondidos (occ: Nosferatu), tem agora um representante no Corpo da Camarilla, trata-se do sr. Paco de Lamar que é duplamente honrado pela posição de Keeper dos domínios de São Paulo. E tem como primogênita a duplamente Reverenciada Cássia.O Clã da Rosa (occ: Toreador) teve muitas vitórias esta noite. A primeira foi a aprovação de Dimitri Miranda que agora é Triplamente Influente por ser o Sr. das Hárpias destas Terras. E o Sr. Kenji, mais conhecido como “K”, que agora é duplamente Temido por ser Algoz destes domínios. E o Sr. Mike que é Reverenciado por duas Vezes por ser Primus da Casa. O Clã Tremere teve uma vitória na Camarilla. O Primogênito continua sendo Duplamente Reverenciado Eduardo van deer Sar, tendo sido criado o cargo de Mestre de Armas para combater a ameaça Sabá, sendo o mesmo ocupado pelo Tenente Rodriguez. O Clã da Realeza, dispensa comentários. Visto que o Bispo Lucas, é agora duplamente Exaltado, duplamente Renomado e Famoso por ocupar a posição de Príncipe destes domínios. O Clã Lasombra, perdeu a cadeira de representatividade na primigênie. Sendo agora considerados Tolerados nestas Terras.O Clã Giovanni não compareceu na reunião. E nada ainda foi dito sobre estes. No ultimo sábado, o Justicar Tremere, esteve nestes domínios. E ordenou que todos estivessem presentes no próximo Elísio cedido pela Casa Tremere. Para que sejam definidos os novos rumos de São Paulo. 

Atenciosamente, Graci Coordenadora Malkavian, Tremere e Lasombra Refúgio dos Ventos”. 
(http://www.espacorpg.com.br/modules.php?name=News&file=print&sid=300).

 

As Palavras são somadas para indicar o status. Observamos no relato diversas formas que as palavras podem assumir como Exaltado, Renomado, Famoso, Temido, etc. e como a disposição de uma nova posição social implica em um aumento de status. O live normalmente assume a forma de festas e eventos convocados por vampiros influentes da cidade e tornam-se eventos de negociação e obtenção status, posição (que são decididos pelo Príncipe nas reuniões Primigênie) e poder. Podemos descrever agora, de forma breve e esquemática, os lives que observamos e refletir sobre estes.

 

O primeiro live seria uma festa no Museu do Ipiranga em comemoração ao estabelecimento de um novo Príncipe, Dimitri Miranda, sendo o momento de muitas trocas de posição social entre os vampiros. Entre os momentos mais significativos podemos indicar uma discussão entre a mestre de Harpias e a Primogênita, ambas da casa Ventrue, por questões relacionadas a status e a preservação das tradições, aparentemente a Primus Ventrue não considerava a Mestre de Harpias capacitada para exercer a função, que era para ela a mais importante da Camarilla, afinal, para esta, “status é tudo”, sem as distinções de status não há Camarilla. 

 

Outro evento importante foi a entrada de membros do clã Brujah armados, o que não seria permitido por ser o Elísio um local de não violência. Houve, no final da noite, uma reunião de Primigênie onde se decidiram as novas posições sociais, havendo muitas mudanças de cargo. Para aqueles que ficam de fora da reunião a sensação pode ser entendida como a da realização da Jihad, a disputa política entre anciões que tem os vampiros mais jovens e a sociedade mortal como meros peões em sua disputa, pois muitos esforços das personagens visam influenciar esta reunião. Tivemos uma discussão sobre a possibilidade de encontrar iluminação por parte dos vampiros e superar sua maldição com uma Nosferatu. Por fim, duas Malkavian utilizaram disciplinas em diversos personagens (prática proibida em um Elísio), inclusive o Príncipe. O uso foi detectado por um Tremere e as personagens fugiram, ficando as jogadoras em off pelo restante do jogo. Posteriormente, em uma rolagem de sábado, o Bingo (e Cassino, no subsolo) que elas possuíam foi destruído por um grupo de vampiros Tremere e Brujah como punição por seu uso indevido das disciplinas. Os atos de violência no interior do Elísio foram interpretados como fraqueza do Príncipe e incapacidade de estabilizar a sociedade cainita da região, inclusive um Ventrue indicou em reservado que, para uma cidade do tamanho de São Paulo, seriam necessários um Xerife e dois Delegados. O live terminou ao amanhecer com explosões do lado de fora do Museu do Ipiranga, tais explosões foram divulgadas na Mídia (que alguns vampiros controlariam) como um ataque terrorista, de modo a preservar a Máscara.

 

O segundo live foi realizado na inauguração de uma casa noturna de temática bizarra e grotesca no centro de São Paulo. A casa noturna seria um Elísio permanente para os vampiros da cidade, ou seja, um local de não-violência onde estes poderiam negociar sem arriscar suas não-vidas. 

 

Os vampiros se identificavam por meio de pulseiras, pois havia mortais ao redor, fato que muitos esqueceram. Na entrada havia um protesto de evangélicos querendo fechar a casa como “coisa do demônio”, algo que a Zeladora do Elísio resolveu chamando a polícia, após um caso de agressão. No interior da casa havia uma série de esculturas e quadros grotescos, alguns com vampiros conhecidos da cidade. Foram feitos acordos e estabelecidas dívidas, com contratos assinados com sangue. Como haviam câmeras na casa noturna, cujas imagens eram enviadas para o lado de fora, alguns vampiros ficaram preocupados com a Máscara e,de fato, ela foi quebrada quando um personagem (e jogador) novo mostrou as presas para outro, após ser provocado. Aparentemente para demonstrar firmeza o Príncipe ordenou, durante a reunião de Primigênie convocada para lidar com a quebra da Máscara, que um deles fosse morto e o outro tivesse as presas arrancadas, mas, como este contestou a sentença foi morto também. Uma questão importante foi a da morte do Primogênito do clã Tremere por um dos membros do clã Brujah, durante as rolagens de sábado à tarde, a questão foi solucionada com o estabelecimento de uma dívida do clã Brujah para com o Príncipe e com a determinação de que os Tremere investigassem o ocorrido. Houve a escolha de um novo Primogênito Ventrue, o outro teria ido embora decepcionado com os rumos do clã em São Paulo, cuja escolha envolveu negociações e acordos entre os membros do clã. Os narradores chamaram a atenção para a narração do momento de nascimento de uma gêmea siamesa, que foi feito em um palco na casa noturna. Em seguida, a criança foi morta. Na reunião de Primigênie, o Primogênito Ventrue, que não era do agrado do Príncipe, assumiu uma dívida de milhões que os Lupinos (os lobisomens) cobravam da Camarilla, e que caso não fosse paga iria ocasionar uma guerra entre vampiros e lobisomens. Nas rolagens de sábado, na semana seguinte, um Tremere conjurou (por meio de mágica) diamantes, que seriam vendidos no mercado negro, para pagar a dívida e estabelecer uma outra, dos Ventrue em relação aos Tremere, mas o plano não deu certo, seria muito difícil negociar as pedras. Antes de o live acabar uma nova reunião foi convocada relatando uma proposta dos anciãos Giovanni, Lasombra e Malkavian em substituir o Príncipe Dimitri pelo Senescal, o ancião Malkavian Daniel Empire (representado por um jogador antigo e dono da casa onde os lives ocorrem). Essa substituição foi impedida pela Primigênie. Esse movimento revolucionário derivou de considerações feitas durante quase todos os lives por diferentes personagens de que o Príncipe seria fraco demais para reger a Camarilla. Em um dos sábados o próprio jogador do Príncipe demonstrou-se cansado de ser acuado a cada live e queria “sair fora”, porém até o final de nossa pesquisa ele permanecia com a mesma personagem ocupando o mesmo cargo.

 

O terceiro live, que ocorreu na casa do Príncipe sem a presença deste, trata-se de uma festa promovida pela nova Mestre de Harpia Sabrina Wallis do clã Toreador, o mesmo do Príncipe. Houve discussões conspiratórias contra o Príncipe, por parte de membros dos clãs Ventrue, Tremere e Brujah, como o golpe não deu certo, foi pedido a Caçada de Sangue de alguns vampiros e outros tiveram seu status bastante reduzido. 

 

O clã Ventrue teve seu Primogênito empalado (ser empalado não mata um vampiro, mas o deixa em inativo, no estado de Torpor) e o clã foi considerado desonroso. Por fim, em conseqüências de diversas situações, novas regras de status foram definidas e para pedir uma audiência com o Príncipe tornou-se necessário possuir três Palavras. O primogênito Gangrel negociou junto ao primogênito Toreador uma reparação de uma gafe dos promotores da festa de não pôr ao lado dos estandartes do clã da Camarilla o estandarte Gangrel, uma vez que na Europa o clã não pertence mais à seita (o que revela diferenças entre o cenário “oficial” de Vampiro, e o jogo do “Refúgio”). Tentou-se matar uma anciã Toreador. E o Primogênito Gangrel discutiu com um novo membro do clã as tradições, organizações e regras da Camarilla e do clã, mas o jovem pretendia tornar mais democrático, ao menos, o clã.

 

No quarto live, que seria uma festa de acordo entre os principados de Campinas e São Paulo foi realizado em Campinas. Como parte do acordo, o status possuído em São Paulo valeria também em Campinas e vice-versa. O clã Ventrue estava bastante enfraquecido, com dois membros que não tinham status nem sequer para ter uma audiência com o Príncipe, o Primogênito empalado, um ancião ausente e um membro importante na situação de Pária. Durante a festa os vampiros de Campinas insinuaram convites para que os vampiros de São Paulo se estabelecessem em Campinas, que era um recente principado da Camarilla, tendo a cidade, anteriormente, pertencido ao Sabá. Alguns vampiros tiveram que retornar no final da noite para São Paulo, para negociar com alguns Anarquistas que ameaçavam entrar em guerra com a Camarilla, caso esta não lhes concedesse um território na cidade. Foi oferecido o bairro de São Miguel aos Anarquistas, mas estes não aceitaram e houve uma batalha (narrada como num jogo de mesa), na qual a Camarilla triunfou.

 

Nesta descrição, de eventos ocorridos durante o jogo, observamos como em um ambiente  mítico e fantástico de horror, os eventos parecem estranhamente semelhantes em sua forma a disputas políticas e relações sociais cotidianas, se bem com uma certa estilização que ressalta os elementos de poder e status, de fato o que parece estar sendo “jogado” é “sociedade”. A “sociedade cainita” torna-se metáfora e reflexão sobre a “sociedade humana”.

 

Personagem e Pessoa

Jogo e realidade são distintos, apesar de homólogos. O contato entre jogo e realidade é realizado preferencialmente por uma relação, que no próprio discurso nativo surge como de mais difícil distinção, a relação entre personagem e pessoa. Ambas possuem um fundo psíquico comum, que é atribuído como qualidades que a pessoa atribui à personagem. Essa construção por vezes apresenta suas lacunas, como quando os jogadores dizem (em off) “sai desse corpo que não te pertence”, paródia dos exorcismos pentecostais que os jogadores usam quando, ao interpretar sua personagem, acabam por misturar suas reações com as que seriam de outras personagens com os quais eles jogaram. Um certo elemento de vaidade também está presente na caracterização das personagens, notadamente das jogadoras, que enquanto se vestiam ajudavam e aconselhavam umas às outras em relação à maquiagem e cabelo, mesmo que em termos de mecânica de jogo, suas personagens não primassem pela beleza física.

 

Já o retorno que a personagem faz à pessoa está no plano da reflexão, no modo como as experiências, narradas coletivamente no live action, tornam-se parte, como metáfora, da interpretação e reflexão que a pessoa realiza da sociedade e da realidade.

 

No interior do jogo, o riso, que irrompe e ameaça a continuidade da narrativa, parece ser o momento mais fértil desta reflexão, pelo efeito de distanciamento e, possivelmente, assombro que este produz. Por exemplo, em uma discussão no primeiro live entre a Mestre de Hárpias e a Primogênito Ventrue, por vezes, as jogadoras entravam em off para rir e comentar, por exemplo: “mas como este seu personagem é irritante”, dizia a jogadora da Mestre de Harpias, ao que respondeu a jogadora da Primogênito Ventrue: “eu sei, é que ela é muito tradicionalista e perfeccionista”. Ou talvez na ocasião em que queriam atribuir a uma personagem o status negativo de Flatulento e, para isso, ficaram discutindo, em off no interior do live, como criar uma ilusão olfativa desagradável quando este personagem passasse pela sala.

 

Para os jogadores ficar permanentemente em on, como exige a regra do jogo, é impossível, pois além de ser cansativo (de fato, muitos jogadores aproveitam o final do live, quando há menos ação, para dormir nos sofás da sala) criaria muita tensão, já que o live de Vampiro lida com temáticas pesadas. O riso surge como escapatória, crítica e sátira deste universo de intriga social e relações de poder, de luta interminável por status e poder. 

 

Conjuntamente ao riso temos os comentários, no interior e depois do jogo, que parecem constituir em um elemento importante desta reflexão sobre as experiências significativas geradas pela personagem durante o jogo.

 

Para gerar esta experiência significativa é decisivo que a personagem corra riscos, que se lance sobre os elementos não-calculáveis de forma confiante, como um aventureiro, pois esta experiência significativa é precisamente isto: uma aventura. A pessoa se distância de si na personagem e, então, está como se estivesse sonhando, mas os risos, os comentários e as interrupções rompem a ilusão e produzem um efeito de estranhamento e assombro, é este o preciso momento em que personagem e pessoa são colocados em relação, de forma reflexiva e recíproca, a personagem e suas experiências servem de metáfora para a pessoa, a personagem e suas experiências, a narrativa produzida, provam-se “bons para pensar”.

 

O outro ponto de contato entre jogo e a realidade são as relações que os praticantes do jogo mantém com a sociedade na qual estão inseridos. Embora trate de temas fortes, como violência e loucura, todo livro de RPG traz advertências de que se trata apenas de ficção, como um reforço a essa consciência de “faz-de-conta”. Casos como os assassinatos em Ouro Preto (MG) e Guarapari (ES), ambos sem confirmação de relação com o jogo, cruzam essa fronteira, deixam de ser o RPG (que nunca coloca a vida dos jogadores na esfera do jogo ou em jogo) para se tornar uma espécie de “roleta russa”  e distorcem algumas das premissas mais elementares do RPG, como o fato de o jogo não ter ganhadores ou perdedores e o desafio girar apenas em torno de evoluir o personagem e vivenciar feitos memoráveis. No entanto, por tratar de temas relacionados à religião e magia, o RPG despertou nos Estados Unidos, seu país de origem, a ira das igrejas protestantes, que rotulam-no de “jogo do demônio”. Esse é o argumento para a proibição do jogo na cidade de Vila Velha (ES). Durante o tempo da pesquisa ocorreram os assassinatos em Guarapari, e os jogadores do “Refúgio dos Ventos” reagiram com preocupação. Embora o ocorrido não tenha sido trabalhado em on, o jogo acaba por afetar, de maneira indireta, a pessoa dos jogadores. Um dos jogadores do “Refúgio” foi proibido pela mãe de ir jogar por causa da maneira enviesada pela qual o jogo foi tratado pela mídia, e foi ao live mesmo assim descumprindo suas ordens. Os jogadores foram unânimes ao declarar que os assassinos de Guarapari não eram jogadores, e sim aproveitadores tentando “alegar insanidade”. No entanto, sabe-se que os assassinos jogavam RPG, o que não quer dizer que o RPG tenha qualquer coisa a ver com o crime. Quando o assunto “esfriou”, também os jogadores pararam de comentar a respeito, de modo que a dimensão do impacto foi menor do que se poderia esperar. Para mais informações, você pode sempre contatar n-a-u.org.

 

Conclusão

A etnografia e a análise nos trouxeram reflexões interessantes sobre a dinâmica do on e off, pessoa e personagem na prática de live action. Vimos que, embora haja uma relação recíproca entre pessoa e personagem centrada no indivíduo que as exerce, essa influência se dá por diferentes vias.

 

A sociabilidade e a reflexão da sociedade são pontos chaves para o entendimento do live. A maneira como o jogador se integra ao grupo influencia as possibilidades de articulação de sua personagem na trama e os meios pelos quais se participa desta, ao mesmo tempo em que estes meios e esta trama são mecanismos de integração ao grupo. O engajamento nas atividades do grupo é valorizado, como pôde ser observado durante o Encontro Internacional de RPG, ocorrido nos dias 3, 4 e 5 de junho no qual diversos jogadores antigos, mesmo os não coordenadores, ajudavam a divulgar e organizar as atividades que o grupo desenvolveu durante o evento.

 

A personagem é usada para exercer a alteridade e faculdade mimética inerente, distanciar-se de si e colocar-se no papel do outro, no entanto a construção da personagem é em si carregada das referências trazidas pela pessoa do jogador e inserida em um cenário, nesse caso específico o “Mundo das Trevas”, que também se concebe por suas referências a outras manifestações culturais. Essa construção torna-se coletiva nos momentos de transição entre on e off, enquanto se ri e se comenta sobre as personagens. Nesse momento por vezes informações e impressões são trocadas na busca pelo enriquecimento das personagens. A partir da alteridade e dos choques entre a realidade virtual do live e a vivência real dos jogadores, produz-se uma reflexão alegórica da identidade dos jogadores e da sociedade na qual eles se inserem. Da mesma maneira, experiências reais dos jogadores se transformam em acontecimentos da trama, sob uma nova roupagem, como os “protestos evangélicos” ocorridos no segundo live, que refletem uma certa hostilidade sofrida pelos jogadores enquanto RPGistas por parte de alguns grupos religiosos. O indivíduo, a pessoa, o jogador de RPG, o participante do grupo “Refúgio dos Ventos”, a personagem e a narrativa fornecem diferentes planos de estranhamento mútuo, e são metáforas “boas para pensar”.

 

Por ser uma construção coletiva mítica, onde “tudo pode acontecer”, o live action é ao mesmo tempo fantástico e assustador, mas semelhante à vida cotidiana. As disputas e motivações dos vampiros revelam antes a sua humanidade do que sua “monstruosidade”. O live permite experimentar. Joga-se política, sociologia, antropologia, filosofia e psicologia, numa proposta de atingir a “sociedade humana” através da “sociedade cainita” em suas diferentes configurações possíveis. Esta proposta consta do próprio livro de “Vampiro, a Máscara”, que descreve o cenário, as personagens e as regras do RPG:

 

O mundo de Vampiro: A Máscara não é o nosso, embora seja próximo o suficiente para causar  um espantoso desconforto. Na verdade, o mundo habitado pelos vampiros é semelhante ao nosso, porém visto através de uma lente escura. Neste mundo, a maldade é palpável e onipresente, as noites finais estão sobre nós, e todo o planeta oscila numa situação crítica de tensão. Este é o mundo das Trevas.

 

Ainda assim, o papel imprescindível do riso e das situações cômicas durante o live lembram a todos que o live é um jogo, uma atividade que gera um limite espaço-temporal recortado, no qual a participação é livre, bem como suas regras. E entre os momentos de exaltação e tensão, há momentos de alegria e distensão.(Huizinga, 1993, p.147) O live é um jogo, e em seus aspectos principais ele é uma luta por alguma coisa (status, êxito na trama) mas principalmente a representação de alguma coisa (papéis, ilusões) . O objetivo central do live, em sintonia com a sociabilidade, é o divertimento. Enquanto o live for um jogo, as ações que nele ocorrem são performances, distanciadas da vida cotidiana, mas capazes de aproximar de maneira mimética e ao mesmo tempo reflexiva as experiências mais distantes com as motivações mais íntimas  .

 

Notas

Agradecemos ao prof. José Guilherme Cantor Magnani pela orientação durante o desenrolar da pesquisa; ao grupo “Refúgio dos Ventos” e seus coordenadores por toda solicitude, paciência e camaradagem que demonstraram desde o começo, permitindo que jogássemos e, ao mesmo tempo, pudéssemos ter o privilégio de observar seu jogo e colher informações que, de outra forma, seriam secretas e barganhadas pelas nossas personagens; ao jogador Drakar por ter nos apresentado  ao grupo e a Caim, por ter sido o primeiro dos vampiros.
 Designação para tudo aquilo que o jogador declarar que seu personagem dirá ou fará, é uma interpretação da personagem.
Na designação original do Dungeons & Dragons era o dungeon master, ou mestre da masmorra. Outros RPGs com cenários (ver adiante) diferentes, tem outros nomes para esse jogador especial, como «Narrador», «Diretor de Cena», «Cidadão Ultra-Violeta», entre outros.
  Jogo em que os jogadores, ao mesmo tempo e sem saber de antemão a escolha do outro, escolhem e representam com suas mãos uma pedra (punho fechado), papel (mão aberta) e tesoura (dedos indicador e médio esticados), numa disputa. A pedra ganha quebrando a tesoura, o papel embrulhando a pedra e a tesoura cortando o papel. Se a escolha dos dois for a mesma, tem-se um empate. No RPG desempata-se pelo valor do atributo do personagem usado no teste. Assim, por exemplo, um personagem considerado forte pelas regras do jogo terá um empate a seu favor se estiver tentando levantar uma pesada grade.
  E talvez, de modo mais geral, dos lives actions de Vampiro: A Máscara. 
  Enfatizo o termo ação social, pois, pensando ação social à maneira de Max Weber, podemos abarcar no termo social a diferença entre uma piscadela e um mero contrair de pálpebras. Se a cultura é pública, ela o é por estar sendo engendrada, constantemente, no interior de ações, interações e relações sociais. 
  Espaços claramente delimitados entre o privado e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, resultado de práticas coletivas e condição para seu exercício e fruição, onde os freqüentadores se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos. No projeto, cometemos o engano de chamar o Centro Cultural de mancha, área contígua de espaço urbano dotada de equipamentos que marcam seu limite e viabilizam – cada qual com sua especifidade, competindo ou complementando – uma atividade ou prática dominante. Embora o Centro Cultural esteja inserido em uma mancha de lazer e práticas culturais que permeia toda a av. Paulista, para o cenário do RPG o Centro Cultural funciona como um pólo de atratividade por fornecer um espaço físico propício para o encontro e tolerância para a prática. No Centro Cultural, os jogadores de RPG se reconhecem ao apropriar o espaço para tecer sua rede de sociabilidade, e não há o fluxo característico das manchas que propicia múltiplas relações entre seus equipamentos para sua apropriação, em suma, não há o trajeto. (Magnani, 1992).
  O RPG e seu cenário serão descritos no item 3.3 – Situação e Performance.
  Há grupos que tem diversos núcleos, às vezes em outras localidades. O maior exemplo é o live oficial de Vampiro, a Máscara «One World by Night», que integra diversos países, fazendo inclusive uma reconstrução de suas histórias sob a influência fictícia dos vampiros. Essas reconstruções viram livros-suplementos.
  um conflito ou objetivo, individual ou do clã, a ser buscado durante o jogo. Exemplo de plot em anexo.
  Uma descrição muito sucinta dos clãs será feita na parte 3. – Situação e Performance.
  «Não escondam o palco/ Recostando-se para trás, deixem o espectador notar/ Os preparativos que transcorrem/ Sutilmente planejados para ele, ele vê/ Uma lua de latão flutuando, um telhado de ardósia/ Sendo trazido. Não lhe mostrem demais. / Mas mostrem! E, amigos, deixem-no consciente de que/ Vocês não são mágicos, mas operários» (Brecht, apud. Dawsey, 1999 p. 21). 
  No projeto  indicamos a possibilidade de pensar o CCSP como uma das «manchas» (Magnani, 2002, p. 21) de praticantes de RPG na cidade de São Paulo. A origem do «Refúgio dos Ventos», a forma como muitos jogadores entram em contato com o grupo nas «rolagens de sábado à tarde» no CCSP e a concentração e saída de boa parte do grupo que jogará o live a partir do mesmo, vem complementar e retocar esta hipótese, levando-nos ao pedaço (ver nota 3). Há aqui uma das possibilidades de desdobramento desta pesquisa. 
  Jogo em que se carrega um revolver com apenas uma bala e cada jogador aponta contra a própria cabeça e dispara, sem saber se a bala está em posição ou não.

 

Bibliografia

Benjamin, Walter. “A doutrina das semelhanças” (1933) in Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985a
Benjamin, Walter. . “O narrador” (1936) in Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas Vol. 1. São Paulo: Brasiliense, 1985b
Dawsey, John C. “De que riem os bóias-frias?”: Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carrocerias de caminhões. Tese de livre-docência. São Paulo: FFLCH-USP, 1999. 
Geertz, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 
Geertz, Clifford. Negara: O Estado-Teatro no século XIX. Lisboa: Difel, 1991.
Goffman, Erving. A representação do “eu” na vida cotidiana (1959). Petrópolis: Vozes, 1985. 3ª Edição.
Huizinga, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1996. 4ª edição. 
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