Música e Estruturalismo

A relação entre música, linguagem e mito, embora polêmica, parece ser muito atraente para Claude Lévi-Strauss, sendo discutida, entre outros trabalhos, em O Cru e o Cozido, Mito e Significado e Olhar, Escutar, Ler. Neste último, Lévi-Strauss resgata um compositor, violonista e filósofo francês do século XVIII, Michel-Paul-Guy de Chabanon (1730-1792), que prenunciou os princípios sobre os quais Saussure fundaria a lingüística estrutural, muito embora tenha se situado no campo da música, sem perceber claramente todas as analogias entre esta e a linguagem articulada (Lévi-Strauss, 1997, p. 72). Chabanon afirmava que um som musical (tal como um fonema) não possuía significado intrínseco e que melodia e harmonia dependiam, para cada som, dos sons que o precediam e o seguiam (apud Lévi-Strauss, 2005, p. 75). Como se pode notar, já havia uma percepção de que os termos não valem em si e que o significado provém das relações entre eles. A análise estrutural se caracterizará, mais tarde, pelo estudo das relações internas presentes em uma totalidade.

Para Chabanon, assim como a língua compõe suas inumeráveis palavras e frases com alguns poucos fonemas, a música também é composta por um repertório limitado de sons (com a diferença de que a música passa diretamente dos sons para as frases sem possuir, como a língua, “palavras”). Segundo ele, para que a música pudesse expressar e transmitir idéias tal como a linguagem articulada, deveria possuir um caráter referencial vinculado à experiência sensível. Se assim fosse, um acorde, que é uma espécie de complexo sonoro resultante da emissão simultânea de três ou mais sons diferentes, deveria designar algo, por exemplo, “pão”. Toda vez que se ouvisse esse acorde, imediatamente a imagem se formaria na mente do ouvinte (apudLévi-Strauss, 2005, p. 75-76). Desta forma, Chabanon já indicava que as palavras são os signos convencionais das coisas, possuindo equivalentes quando se trata de idiomas diferentes; por isso podem ser encontradas correspondências e é possível fazer traduções. Em música, pelo contrário, os sons não estão no lugar das coisas; são a própria coisa (apud Lévi-Strauss, 2005, p.76). Para a música – e aqui é Lévi-Strauss quem observa – não existe um equivalente do dicionário. Não é possível, por exemplo, traduzir uma Sonata de Beethoven.
Para Lévi-Strauss, entre a linguagem, a música e o mito, a linguagem seria o sistema mais completo, na medida em que possui todos os níveis – fonemas, palavras e frases. A música e o mito teriam se originado dela, desenvolvendo-se separadamente e em diferentes direções: se em música não existe o equivalente às palavras, no mito o que importa é o sentido e não o som .

 

Outra hipótese de Lévi-Strauss é que mito e música são linguagens simétricas. Quando se está ouvindo música (a música clássica ocidental), reconhece-se algo que tem claramente um começo, um meio e um fim, ou seja, que se desenvolve através do tempo e é uma totalidade. Simultaneamente, esta totalidade possui um tema central acompanhado de variações, que, de tempos em tempos, voltam a aparecer, sendo possível relacionar o que se ouviu antes com o que se está a escutar. Ou seja, as frases musicais reaparecem ao longo da peça. Ocorreria um fenômeno semelhante com o mito: há um tema central e temas secundários, que se repetem durante a narrativa. Lévi-Strauss chama esta relação entre mito e música de “relação de similaridade” (1981, p. 67).
Segundo a “relação de similaridade”, deve-se ler uma partitura musical não só da esquerda para a direita, mas, simultaneamente, na vertical, de cima para baixo, tentando entender a página inteira, além de perceber que cada página relaciona-se a todas as demais. Assim, consegue-se isolar as frases musicais, acompanhar suas reaparições ao longo da obra e usufruir este tipo de prazer que a música pode proporcionar: “só se pode entender e sentir a música se, para cada variação, se tiver em mente o tema que se ouviu em primeiro lugar” (Lévi-Strauss, 1981, p. 72). O mesmo acontece com o mito.

Esta é a razão porque devemos estar conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja, linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de o apreender como uma totalidade e descobrir que o significado básico do mito não está ligado à seqüência de acontecimentos, mas antes, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da História (Lévi-Strauss, 1981, p. 67-68). 

É preciso, entretanto, situar o momento histórico preciso em que essa simetria teria passado a vigorar. Segundo Lévi-Strauss, isto ocorreu com o nascimento do tonalismo. Lévi-Strauss defende a hipótese de que a música ocidental, tal como se desenvolveu nos séculos XVII, XVIII e XIX, teria assumido a “função intelectual e também emotiva” do pensamento mitológico enfraquecido pela ciência (1981, p. 68-69). O mito teria “reencarnado” na música tonal graças ao caráter narrativo de ambos. Lévi-Strauss cita como exemplo as composições de Bach e Wagner, principalmente a tetralogia wagneriana O Anel dos Nibelungos. Nesta obra, tal como numa narrativa mítica, um tema musical (o da renúncia do amor) reaparece diversas vezes. Outro caso significativo seria o da fuga, tal como formalizada no tempo de Bach, remetendo à representação sonora de dois motivos (ou grupos de motivos) contrastantes entre si, que se “perseguem” ao longo da peça, também de uma forma similar ao que ocorre em certos mitos.

A história inventariada pelo mito é a de um grupo que tenta escapar ou fugir do outro grupo de personagens. Trata-se então de uma perseguição de um grupo pelo outro, chegando às vezes o grupo A a alcançar o grupo B, distanciando-se depois novamente o grupo B – tudo como na fuga. (…) A antítese ou antifonia continua pela história fora, até ambos os grupos estarem misturados e confundidos – um equivalente da stretta da fuga; finalmente, a solução ou clímax deste conflito surge pela conjugação dos dois princípios que se tinham oposto durante todo o mito  (Lévi-Strauss, 1981, p. 72-73).

No filme Assédio pode ser encontrada uma construção semelhante, mitológica ou musicalmente falando. O espectador irá se deparar com diversos níveis de oposições – no campo político-econômico (países desenvolvidos X países dependentes), no cultural (África X Europa),  no da linguagem musical (música modal X música tonal), no das formas de trabalho (braçal X intelectual; informalidade X legalidade) e, por fim, no das emoções (lago X vulcão). Algumas dessas oposições encontrarão em um terceiro elemento uma espécie de “ponte”. A personagem feminina, que veio de um país africano subdesenvolvido e trabalha como empregada doméstica fazendo o contraponto com o patrão/pianista inglês, ao ter acesso, na Itália, a um curso superior, poderá superar sua condição profissional e adquirir independência econômica. Shandurai e Kinsky, no início separados social, cultural e musicalmente falando, vão se aproximando ao longo da narrativa através das linguagens universais do amor e da música. Através de meios distintos somente na aparência, que funcionam como variações (mensagens e presentes enviados através do elevador,  músicas, a promessa da volta ao país de origem, a venda de todos os seus bens, inclusive o piano), Kinsky (Jasão/Ansaldo) enfrenta seus limites para conquistar Shandurai. Esta, por sua vez, vai abandonando aos poucos sua postura arredia e formal, até o momento em que “dança” ao som do piano de Kinsky. Como foi visto, quando Kinsky começa a compor para Shandurai, o piano praticamente assume a função de um instrumento de percussão e a música ganha ritmo e velocidade similares aos das sonoridades tribais africanas.
O pianista inglês, tanto no conto de Lasdun como no filme de Bertolucci, não é somente um intérprete; é também um compositor. O caminho criativo que ele percorre, como foi visto, é o do próprio desenvolvimento da narrativa: sua música torna-se uma metáfora não só da relação homem/mulher, mas do encontro entre mundos culturalmente diferentes. Sendo estes mundos a África e a Europa, os diálogos entre a música modal e a tonal, que perpassam todo o filme, reassumem na música de Kinsky sua relevância histórica. Nas palavras do compositor Alessio Vlad:

Muito difícil traduzir pianisticamente algo que soe como uma aquisição da Música Africana e que possa depois conviver com o material temático ‘ocidental’. Desta vontade nasceu a peça ‘Ostinato’, que Kinsky compõe e toca para Shandurai. Um módulo rítmico assimétrico baseado sobre intervalos de quinta vem repetido ostensivamente sobre diversos planos sonoros até encontrar-se no material temático. Para depois recomeçar mais uma vez e gerar novo material temático, como uma dança tribal, repetitiva, obsessiva, ao infinito (retirado do encarte do CD da trilha sonora do filme). 

A composição “Ostinato” (Obstinado) remete, em termos emocionais, à persistência de Kinsky, e, por outro lado, à estrutura do mito. Nela percebem-se dois temas distintos: um inicial, ritmado, veloz, em que o piano é utilizado quase à maneira de um instrumento de percussão; o segundo, melodioso, mais lento, porém intenso, que “persegue” o primeiro. É preciso lembrar que, no filme, o pianista compõe inspirando-se nos ruídos do aspirador de pó bem como no ritmo dos movimentos do corpo da mulher amada, incorporando dissonâncias e assimetrias que, além de aludir às transformações ocorridas com a música clássica ocidental no século XX, irão provocar em Shandurai uma mudança visível de comportamento. Shandurai (ritmo das sonoridades africanas + ritmo do trabalho) e Kinsky (melodia), ao se aproximarem pela linguagem do amor, podem representar, através da música “Ostinato”, as relações do mundo modal africano com o mundo tonal europeu.

 

Antropóloga, Professora da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e Pesquisadora Associada do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo.

NOTAS

  José Miguel Wisnik cita um mito arecuná, do norte do Brasil, colhido por Koch-Grünberg e analisado por Lévi-Strauss em O Cru e o Cozido, que trata da “origem do veneno da pesca” e remete ao “sacrifício do ruído” no ato da criação cultural do som. Num certo ponto deste mito, o arco-íris é uma serpente aquática com uma pele multicolorida, que é morta pelos pássaros, cortada em pedaços e redistribuída entre todos os animais. Conforme a coloração do fragmento recebido por cada um dos bichos, serão definidos o som de seu “grito” particular e a cor de sua pelagem ou plumagem. Assim, a arara, o papagaio, o jacu, a garça, o rouxinol, o tucano, o tapir, a capivara, o veado, a cutia, o macaco, entre outros, passam a exibir suas cores bem como suas “músicas” identificadoras. O “continuum” do mundo será recortado no mito (como também o faz a cultura) para que se criem ordens singulares e diferenciadoras (2004, p. 36-37).
  Segundo Wisnik, a música pode ser descrita como “a própria extração do som ordenado e periódico do meio turbulento dos ruídos” (2004, p. 27). 
  Devo a Luciana Ferreira Moura Mendonça (pós-doutoranda do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra/Núcleo de Estudos sobre Cidades e Culturas Urbanas esta observação, além de uma leitura atenta dos originais.
Entrevista extraída do site da RAI International On Line, onde não consta o nome do entrevistador. Capturado em  16 jan. 2007.
  Em relação ao filme O Último Tango em Paris, é preciso lembrar que foi proibido na Itália. No Brasil, ainda em 1988, não podia ser exibido na TV. A justiça italiana condenou Bertolucci e o produtor a dois anos de prisão, além de determinar a destruição dos originais. Bertolucci contrabandeou o negativo para fora das fronteiras do país e, deste modo, garantiu sua preservação. Este acontecimento foi marcante na trajetória do cineasta que, enquanto se desenvolvia o processo, perdeu seu direito ao voto por cerca de cinco anos. “Senti ódio e, pela primeira vez, tive vontade de deixar este país. Na época eu era muito politizado e o episódio, um tanto heróico, foi terrível” (apudByington & Carelli, p. 52, 1999). A este fato somou-se a desilusão de Bertolucci perante a corrupção política, apontada por ele próprio como uma das causas de sua opção por filmar fora da Itália (como nas obras O Último Imperador, O Céu que nos Protege e O Pequeno Buda).
  A teoria do “cinema autoral» foi o pilar do movimento da Nouvelle Vague. Criada em 1954 por François Truffaut, que ainda era apenas um crítico da revista francesa Cahiers Du Cinema, essa teoria afirma que uma pessoa, quase sempre o diretor, tem a única responsabilidade sobre o filme e que sua visão pessoal da sociedade pode ser observada na obra. Truffaut falava da necessidade de se empreender uma “Revolução Cinematográfica”: uma predominância de locações externas nas filmagens; menos restrições dos estúdios, produtores ou roteiristas; uma forma mais solta para o ato de atuar; uma produção simplificada e acessível ao amador (alguns cartuchos de filme e uma câmera versus as exigências da indústria cinematográfica); e, mais importante, diretores que iriam escolher o próprio material, rejeitar clichês e criar filmes pessoais, sempre conscientes da natureza específica do meio cinematográfico. Isso significava que o filme podia ser visto como uma produção individual, não muito diferente de um livro ou uma música. François Truffaut, Jean-Luc Godard, Claude Chabrol, Pierre-Louis Rivette, Eric Rohmer e Alain Resnais estavam no centro desse movimento. A Nouvelle Vague francesa alcançou repercussão internacional, influenciando movimentos como o Cinema Novo brasileiro (vide http://www.facom.ufba.br/com112_2001_2/nouvellevague/texto_02.html). Bertolucci, que fez seu primeiro filme aos 21 anos (La Commare Secca, 1962), admirava os cineastas franceses da Nouvelle Vague. Dizia, com freqüência, que o francês era a língua oficial do cinema. Neste momento, na Itália, o Neo-Realismo já perdia seu vigor e a “comédia à italiana” (Dino Risi, Monicelli, Ettore Scola) ganhava força (Byington & Carelli, p. 49, 1999). O filme O Conformista (1970), uma adaptação do romance homônimo de Aberto Moravia, rendeu a Bertolucci a indicação ao Oscar de melhor roteiro adaptado e ao Urso de Ouro em Berlim. Este trabalho, porém, gerou um esfriamento de sua amizade com Godard, que criticou abertamente a obra, e um distanciamento da Nouvelle Vague. Com este filme, Bertolucci parecia inclinar-se para um cinema que se aproximasse mais do público, ao contrário de cineastas mais radicais e militantes, como Godard, que rejeitavam tudo que implicasse em assumir uma caracterização mais comercial. Estava-se, ainda, muito perto dos acontecimentos de Maio de 68. Godard, por exemplo, era Maoísta; o próprio Bertolucci fora militante do PCI.
  Em entrevista concedida à Revista Bravo, Bertolucci relembra sua convivência com os cineastas brasileiros ligados ao Cinema Novo. Glauber Rocha, Gustavo Dahl e Paulo César Saraceni passaram períodos de tempo variados na Itália enquanto esteve em curso a ditadura militar no Brasil. Bertolucci ressalta que  tanto o cinema que ele realizava naquele momento quanto o Cinema Novo brasileiro tinham sua origem na Nouvelle Vague francesa (Byington & Carelli, p. 49, 1999). Em janeiro de 1965, Glauber Rocha participou de um seminário em Gênova sobre o “cinema de autor” e o “cinema novo”. Defendeu, nesta ocasião, o que chamou de “estética da fome”, impregnado que estava pela perspectiva revolucionária existente na América Latina, simbolizada por Che Guevara, então ainda vivo. Dizia que a única forma do colonizador compreender a existência do colonizado era através de uma estética marcada pela violência dos temas e imagens. O Cinema Novo, na visão de Glauber, devia dar ao público a consciência de sua própria existência, ser útil ao ativismo político e promover a reflexão filosófica. Enfim, um “cinema de autor” levado às últimas conseqüências (Feijó, 1996, p. 12-16).
   Em Assédio, embora a música seja central, não há cenas de dança. Em Antes da Revolução, tia e sobrinho dançam de rostos colados, na sala, diante do pai que lê seu jornal e da avó que dorme profundamente sentada no sofá. O momento máximo da transgressão se dá quando, depois do pai ter se retirado para seu quarto (“acordem-me às 16h”), os dois se beijam enquanto a família, metaforicamente, está adormecida. No filme de 1972, quando a relação entre os dois personagens, que se conheceram de modo casual nas ruas da cidade, atinge o ápice das contradições, começa a tocar um tango. As cenas que antecedem o final do filme irão se desenvolver durante um concurso de dança. O personagem americano, que até então manteve sua identidade em segredo, começa a desvelar seu passado na tentativa de recomeçar a relação em novas bases, propondo, inclusive, que os dois passem a morar junto. Porém, o encontro só é possível no campo da transgressão dos valores da “sagrada família” e a jovem recusa-se a trocar a fantasia sexual por uma rotineira vida de casada. Quanto à música, considerando estes três filmes, é em Assédio que ela adquire papel fundamental, podendo-se dizer que os temas musicais (sejam os africanos sejam os ocidentais) continuam a “narrar” a história através dos “espaços abertos” pela ausência de palavras, como diria Abbas Kiarostami (2004, p.184). 

  Sobre a categoria trajeto vide Magnani, 1984. Para Magnani, trajeto remete a deslocamentos recorrentes por regiões distantes e não contíguas no espaço mais abrangente da cidade, bem como no interior das manchas urbanas (áreas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam uma atividade ou prática dominante, por exemplo, na área da saúde, do lazer, etc.). Trajetos, de modo geral, ligam equipamentos, pontos, manchas, sejam estes complementares entre si ou não. 

  Comparativamente, a Roma do filme homônimo de Fellini (Roma, 1972) está dentro de uma chave mais histórica, sendo tratada a partir de uma crítica ao fascismo, à monarquia e ao cristianismo. Para a análise do filme Roma vide Martins, 2000. Igualmente o filme Roma, cidade aberta (1945), de Roberto Rossellini, filmado logo após a libertação da Itália, em locações reais e com a participação de inúmeros atores amadores, mostra a cidade sob a ocupação nazista, tendo se tornado o marco inicial do neo-realismo italiano. O roteiro de Roma, cidade aberta foi escrito em um apartamento na Piazza di Spagna, sendo a primeira cena do filme feita também nesta locação. 
  No documentário “Cinema sem tempo”, realizado pela RAI a partir de diversas entrevistas concedidas por Bertolucci até o final dos anos 90, o cineasta comenta sobre Assédio: “Este é um pequeno filme para a televisão, um filme de uma hora, que ocorre quase todo nesta casa semi-abandonada. Repare que temos as janelas do andar de cima que dão para a escadaria de Trinità dei Monti. Eu não quero, como fariam os americanos se filmassem aqui, usar imediatamente o que eles chamam de ‘production values’, ou seja, o valor do set em si. Quero tratá-lo com muita economia, de modo quase minimalista. Quero, devagarinho, descobrir antes as escadas com pessoas sentadas, que poderão estar em qualquer lugar, e, depois, sempre devagar, lá para o fim: ah!”. Porém, até o fim do filme, nem a praça, nem a igreja, nem a escadaria serão filmadas em um plano mais aberto. Em algumas críticas sobre este filme, diz-se que Bertolucci “descuidou-se” da ambientação cenográfica por ter pouca verba e, portanto, pouco tempo para sua realização. Entretanto, ao que parece, há aqui uma intencionalidade de “economizar” também imagens.
  Sobre a categoria pedaço vide Magnani, 1984. O pedaço, segundo Magnani, possui um componente físico e remete, também, a um conjunto de relações sociais. Assim, no caso do bairro, não basta passar por um lugar ou mesmo freqüentá-lo com alguma regularidade para ser do pedaço: é preciso estar situado (e ser reconhecido como tal) numa peculiar rede de relações que combina laços de parentesco, vizinhança, procedência, participação em atividades comunitárias, etc. Em áreas mais centrais da cidade, ser do pedaço não significa conhecer de fato as pessoas, mas se reconhecer como portador dos mesmos símbolos, que remetem a gostos, valores, hábitos de consumo e modos de vida semelhantes e compartilhados.
  Sobre a categoria de não-lugares vide Augé, 1994. 
  Sobre as categorias familiar e exótico vide Da Matta, 1974.
  As frases foram transcritas diretamente do DVD do filme Antes da Revolução
  É interessante notar que os atores também não são italianos (aliás, o que não é incomum na filmografia de Bertolucci, fato pelo qual já foi bastante criticado). Nascida a 6 de Novembro de 1972,  em Londres, Thandie Newton é filha de pai inglês e mãe africana da tribo Shona, do Zimbabwe (a grafia correta de seu primeiro nome é Thandiwe, que significa “beloved”, amada). Morou no Zâmbia até que perturbações políticas forçaram a família a voltar para a Inglaterra. Estudou dança moderna, na Inglaterra, e teatro, nos EUA. Na Inglaterra, na Universidade de Cambridge, formou-se em Antropologia. O outro protagonista, David Thewlis, nascido em Blackpool, mudou-se para Londres aos 18 anos para estudar na prestigiada Guildhall School of Music and Drama. Trabalhou na televisão e no teatro, tendo recebido, por sua atuação em Naked (1993), de Mike Leigh, o prêmio de Melhor Ator em Cannes. 
  O monta-cargas era um elevador que servia para levar as comidas preparadas pelos empregados para os andares superiores da casa, onde os patrões faziam suas refeições. Percebe-se que no filme (como no conto de Lasdun) ocorre uma inversão: é de cima que vêm os enigmáticos presentes que o pianista envia para a empregada, o que configurará o assédio. O sobrado de época, escolhido por Bertolucci como cenário, adquire ainda mais sentido para esta história por ter sido o lugar em que Gabriele D’Annunzio escreveu seu romance Il piaccere (Carlos, 2005).
  A flauta que aparece nas mãos de Hermes nesta representação do deus grego remete a Pã. Segundo Pugliesi, Pã é filho de Hermes, sendo representado com chifres e corpo de bode da cintura para baixo. Muitas vezes é confundido com um fauno ou um sátiro. Aparece associado à flauta de sete tubos, conhecida como “flauta de Pã”, porque teria sido seu inventor (2005, p. 114). 
  Devo a Rita Amaral esta observação.
  Segundo Clare Peploe, co-roteirista, Kinsky “parece temer as mulheres e só consegue aceitar uma presença feminina dormindo em casa na forma de empregada” (apud Byington & Carelli, p. 55, 1999).
 Há uma cena no filme que remete de forma poética à questão da sedução. Shandurai está, como de costume, limpando os arabescos de metal da escadaria quando Kinsky se prepara para sair. Neste momento, Shandurai está posicionada um andar acima do dele. Quando Kinsky começa a descer, Shandurai pára seu trabalho para observá-lo e, “sem querer”, deixa escorregar de sua mão o pano de limpeza, que cai volteando no ar até terminar na cabeça dele. Kinsky pega o pano e, de forma irônica, diz “Acho que isso é seu”, aliás a frase de Shandurai ao devolver-lhe o anel. Shandurai, de maneira tímida e um tanto atrapalhada, tenta se justificar. Devo à amiga e aluna Karla Lima (co-autora, juntamente com Pya Pêra, do livro Armário sem portas, Edição do Autor, São Paulo, 2006) a observação de que isto se assemelha com “derrubar o lencinho”, prática de sedução e conquista tematizada nas histórias de cavalaria do período medieval. 
  Nesta cena, Shandurai olha fixamente as canelas de Kinsky, num momento em que sua pele alva aparece entre a meia e a calça comprida.
Aqui, enquanto se dá o diálogo, Shandurai está de pé e Kinsky está sentado no chão, pois até o sofá foi vendido. Significativamente, há uma televisão ligada, também apoiada no chão, que está sintonizada em uma corrida de automóveis, o que pode remeter à competição entre dois homens pela mesma mulher. 
  José Miguel Wisnik, em O som e o sentido, afirma que essa hipótese de Lévi-Strauss não precisa ser entendida literalmente como uma proposição «genética», mas, dentro das propostas do estruturalismo, como «jogo matemático»; remete  Lévi-Strauss ao quadrivium medieval (que unia aritmética, geometria, música e astrologia como disciplinas básicas para o conhecimento do universo), dizendo que este autor teria seu próprio quadrivium estrutural (matemática, língua, música e mito). Na matemática, encontram-se estruturas em estado puro, isentas de som e sentido; na língua, as estruturas são duplamente encarnadas, pois nascem da intersecção entre som e sentido. ‘Menos encarnadas’ que a língua e ‘mais encarnadas’ que a matemática, as estruturas musicais constituem-se do som e, as míticas, do sentido (Wisnik, 2004, p. 163).
  Só para tomar alguns exemplos: o blues é um dos produtos da sobreposição singular do sistema modal com o tonalismo. No caso do Brasil, o canto de João Gilberto une um repertório tonal mais linear, melódico, a nuances rítmicas, timbrísticas e contrapontuais entre voz e instrumento; vide Wisnik, 2004, p 226.

 

Bibliografia

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FILMOGRAFIA DE BERNARDO BERTOLUCCI
La commare secca, 1962.
Antes da revolução, 1964.
La via del petrolio, 1965.
Il canale, 1966.
The partner, 1968.
Amore e rabbia, 1969.
A estratégia da aranha, 1970.
O conformista, 1971.
O último tango em Paris, 1972.
1900, 1976.
La luna, 1979.

A tragédia de um homem ridículo, 1982.
O último Imperador, 1987.
O céu que nos protege, 1990.
O pequeno Buda, 1993.
Beleza roubada, 1996.
Assédio, 1998.

Paraíso e Inferno, 1999.
Os sonhadores, 2003.

 

FICHA TÉCNICA DOS FILMES CITADOS

Antes da Revolução

Sinopse: O jovem Fabrizio oscila entre um tipo de romantismo pré-revolucionário e o engajamento de fato nas mudanças sociais que se seguem às convulsões políticas. É extremamente crítico e não consegue acreditar inteiramente nas bandeiras aceitas por outros militantes. Por outro lado, demonstra também um certo conformismo.

Título original: Prima della revoluzione
País de origem: Itália
Ano: 1964
Duração: 115 min
Diretor: Bernardo Bertolucci
Roteirista(s): Gianni Amico, Bernardo Bertolucci
Fotografia: Aldo Scavarda
Música: Ennio Morricone, Aldo Scavarda
Elenco: Francesco Barilli, Adriana Asti, Allen Midgette, Morando Morandini, Christina Pariset, Gianni Amico, Domenico Alpi

O Conformista
Sinopse: Na Itália de 1938, sob o poder de Mussolini, um jovem professor torna-se um lacaio fascista. Em viagem de lua-de-mel a Paris, recebe ordens para planejar o assassinato de um inimigo do regime. Surpreende-se, no entanto, quando toma conhecimento que este homem é seu antigo mestre.
Título original: Il conformista
País de origem: Itália, França, Alemanha
Ano: 1970
Duração: 115 min
Diretor: Bernardo Bertolucci
Roteirista(s): Bernardo Bertolucci; Alberto Moravia
Fotografia: Vittorio Storaro
Música: Georges Delerue
Elenco: Jean-Louis Trintignant, Stefania Sandrelli, Gastone Moschin, Enzo Tarascio, Fosco Giachetti, José Quaglio, Dominique Sanda, Pierre Clémenti, Yvonne Sanson, Milly, Giuseppe Addobbati, Christian Aligny, Carlo Gaddi, Umberto Silvestri, Furio Pellerani, Luigi Antonio Guerra, Orso Maria Guerrini, Pasquale Fortunato, Antonio Maestri, Alessandro Haber, Massimo Sarchielli, Pierangelo Civera, Christian Belegue, Benedetto Benedetti, Claudio Cappeli, Romano Costa, Marta Lado, Luciano Rossi, Gino Vagniluca.
O Último Tango em Paris
Sinopse: Obra-prima de Bertolucci que marcou época e escandalizou as platéias com a história de um homem sofrido que se entrega a uma paixão alucinada por uma jovem parisiense. Ela está prestes a se casar, mas não se importa com quanto tempo esta relação possa durar nem com regras e papéis sociais tradicionais.

Título original: The last tango in Paris
País de origem: Itália, França, EUA
Ano: 1972
Duração: 136 min
Diretor: Bernardo Bertolucci
Roteirista(s): Bernardo Bertolucci, Franco Arcalli, Agnès Varda
Fotografia: Vittorio Storaro 
Música: Gato Barbieri
Elenco: Marlon Brando, Maria Schnaider, Jean-Pierre Léaud, Maria Michi, Verônica Lazar

O Último Imperador

Sinopse: A saga de Pu Yi, alçado ao posto de imperador da China com apenas três anos de idade. Yi passou boa parte da vida enclausurado na Cidade Proibida até que o governo revolucionário o depôs, forçando um jovem de 24 anos a conhecer uma outra realidade. Uma história de transformações pessoais e culturais.
Título original: The Last Emperor
País de origem: Itália, Inglaterra, China, Hong Kong
Ano: 1987
Duração: 160 min
Diretor: Bernardo Bertolucci 
Roteirista(s): Mark Peploe, Bernardo Bertolucci, Henry Pu-yi
Fotografia: Vittorio Storaro 
Música: David Byrne, Ryuichi Sakamoto, Cong Su
Elenco: John Lone, Joan Chen, Peter O’Toole, Ying Ruocheng, Victor Wong, Dennis Dun, Ryuichi Sakamoto, Maggie Han, Ric Young, Cary-Hiroyuki Tagawa
Premiação: nove Oscars, incluindo o de melhor filme e melhor diretor

O Céu Que Nos Protege 
Sinopse: Nos anos 40, casal americano em crise e amigo rico partem para a África sem qualquer objetivo especial. Procurando apenas aventura, eles vivem experiências marcantes, sob o sol do Saara, onde aprendem a se autoconhecerem.
Título original: The Sheltering Sky
País de origem: Itália, Inglaterra, EUA 
Ano: 1990
Duração:137 min
Diretor: Bernardo Bertolucci 
Roteirista(s): Mark Peploe, Bernardo Bertolucci, Paul Bowles
Fotografia: Vittorio Storaro
Música: Ryuichi Sakamoto
Elenco: John Malkovich, Debra Winger, Campbell Scott, Jill Bennett, Timothy Spall, Eric Vu-An, Juliet Taylor, Amina Annabi, Tom Novembre, Kamel Cherif

 

O Pequeno Buda
Sinopse: Família americana é visitada por tibetanos que alegam ser seu filho a reencarnação de um Lama, mestre espiritual budista. É o início de uma jornada no espaço, rumo ao Oriente, e no tempo, em busca de referências culturais tão distantes da realidade vivida por aquela família. 
Título original: Little Buddha
País de origem: Itália, Inglaterra, França 
Ano: 1993
Duração: 140 min
Diretor: Bernardo Bertolucci
Roteirista(s): Bernardo Bertolucci, Rudy Wurlitzer, Mark Peploe
Fotografia: Vittorio Storaro
Música: Ryuichi Sakamoto
Elenco: Keanu Reeves, Ruocheng Ying, Chris Isaak, Bridget Fonda, Alex Wiesendanger, Raju Lal, Greishma Makar Singh, Sogyal Rinpoche 
Assédio
Sinopse: Jovem africana foge para a Itália quando seu marido é preso pelo governo ditatorial local. Em Roma, decide cursar a faculdade de medicina e, para pagar os estudos, emprega-se como doméstica na casa de um pianista solitário de nacionalidade inglesa. Quando este se apaixona por ela e declara seu amor, fica sabendo de sua condição de mulher casada. 
Título original: Besieged
País de origem: Itália, Inglaterra
Ano: 1998
Duração: 93 min
Diretor: Bernardo Bertolucci
Roteirista(s): Bernardo Bertolucci, Clare Peploe
Fotografia: Fabio Cinchetti
Música: Alessio Vlad
Elenco: Thandie Newton, David Thewlis, Claudio Santamaria, John C. Ojwang, Massimo De Rossi, Cyril Nri, Paul Osul, Veronica Lazar, Gian Franco Mazzoni, Maria Mazetti Di Pietralata, Andrea Quercia, Alexander Menis, Natalia Mignosa, Lorenzo Mollica, Elena Perino, Fernando Trombetti, Veronica Visentin