O valor simbólico do dinheiro e o princípio da equivalência: um estudo sobre as moedas sociais em um clube de trocas em Porto Alegre Guilherme Francisco Waterloo Radomsky
Doutorando em Antropologia Social (UFRGS)Após apresentarem os fundamentos do mana no clássico Esboço de uma Teoria Geral da Magia, Marcel Mauss e Henri Hubert descrevem as muitas formas que ele toma nas diferentes sociedades. Os autores impressionam-se com a amplitude do termo e com a “força” da expressão e afirmam que as sociedades ocidentais têm dificuldade em entendê-las. O mana está associado à magia, à força das pessoas e das coisas, a uma potência mística; é uma categoria que equivale a muitos processos, e, ao final desta primeira descrição, Mauss e Hubert (2003a, p. 143) mostram que “em certas ilhas, a palavra mana designa inclusive o dinheiro”. Poderíamos inverter a frase e pensar não no mana e em sua força abrangendo inclusive a noção de dinheiro, mas indagar o dinheiro e sua força associados a uma eficácia mágica ou um poder místico em certas ilhas. Qual o poder do dinheiro? Que tipo de propriedades e condutas sociais estão associadas a ele?Na teoria econômica a moeda foi e é um tema de análise bastante vasto, tendo enfatizadas suas propriedades e capacidades. A discussão dos economistas recupera a interpretação do dinheiro em seus diversos papéis: como reserva de valor, equivalente geral e também compreendendo elementos como as quase-moedas, criadas por agentes privados como um fator importante para resolver problemas de falta de liquidez (Soares, 2006, p. 72) .
A questão que motivou este trabalho se insere neste panorama, isto é, do poder do dinheiro e sua profunda inserção nas urdiduras do social. Mais especificamente, o trabalho analisa a relação entre o valor simbólico do dinheiro e os usos de moedas sociais e trocas em clubes específicos, denominados de clubes de troca. Estes clubes são criados por um número relativamente pequeno de pessoas que se encontram algumas vezes por mês para trocar bens e serviços. Em muitos casos, são cunhadas moedas chamadas de sociais, pois geralmente estão associadas a regras próprias, circulam apenas no grupo e há limites para sua acumulação (Burigo, 2000; Mance, 2002). Zelizer (2005a, p. 297) afirma que este é um movimento que ocorre mundialmente, embora com mais intensidade na Europa e nas Américas. As moedas sociais e os clubes de troca foram empreendidos com a intenção de criar mecanismos de relações sociais e econômicas distintos dos que caracterizam o uso do dinheiro oficial, sendo os mais conhecidos os Lets (Local Exchange Trade System) dos países de língua inglesa , o Clube Del Trueque na Argentina e o Sel francês (Système d’Exchange Local).
O trabalho de Zelizer (2005a) mostra que era comum no século XIX lojas e organizações criarem suas próprias moedas como uma forma de se contrapor à escassez das pequenas trocas. Como remédio para crises, também foram utilizadas durante a Depressão dos anos 1930 nos Estados Unidos. O que diferencia o movimento atual das moedas sociais é justamente sua existência em meio ao dinheiro oficial e sua espacialidade, ou seja, geralmente ocorre em comunidades, em uma cidade ou através de redes que criam certa territorialidade. Por essa razão, alguns autores afirmam que há princípios de comunitarismo nestas iniciativas (Williams, 1997; Schroeder, 2002), em contraposição ao desenvolvimento da sociedade capitalista global.
Diversos pesquisadores têm mostrado que estes clubes são empreendimentos para enfrentar problemas econômicos como o desemprego, porém não raro encontram-se referências acerca do fato de que eles são formulados por pessoas que têm acesso razoável a informações e escolaridade – profissionais liberais, ecologistas etc. Mesmo o Clube Del Trueque na Argentina, analisado por Primavera (s/d.) e que foi criado em meio à crise econômica que vivia o país na década de 1990, apresentou comportamento semelhante: foram estratos sociais específicos e com engajamento em outras esferas (ecologismo, alternativismo) que iniciaram suas operações. Mais que desenhar um esboço obtuso de resistências, talvez devêssemos pensar os grupos em termos de inventividade de práticas.
Alguns clubes de troca e redes de moedas sociais, por exemplo, têm sido planejados para serem integrados por pessoas de classes populares – é o caso quando ONGs estrangeiras aportam no país para divulgar formas alternativas de economia e de usos de moedas locais. Neste sentido, o público diretamente beneficiário destas trocas seria aquele pertencente a estratos sociais mais baixos da população. Entretanto, olhando-se com mais acuidade, para pessoas de baixa renda, o que significa ser estimulado a apenas trocar? Um primeiro contato com participantes de um clube de trocas de Porto Alegre permitiu observar que estimular as trocas sem jamais “tocar no dinheiro oficial” não é tão simples, uma vez que o dinheiro carrega um simbolismo (Dodd, 1997), está ligado ao poder (Hart, no prelo) , à individualidade (Simmel, 1998) e, como bem lembra Zelizer (2005a), os circuitos econômicos destes grupos nunca são fechados – o dinheiro oficial faz parte de um circuito muito mais amplo. A pergunta que emerge deste contexto é: qual o valor simbólico do dinheiro e das trocas para grupos sociais que em situações cotidianas obtêm pouco dinheiro oficial? E que problemas surgem para a constituição dos clubes de trocas? O valor simbólico do dinheiro estaria vinculado ao princípio da equivalência que ele impõe, tão significativo nas economias monetárias?
Pretende-se aqui demonstrar alguns resultados de uma pesquisa sobre este tema. A pesquisa de campo foi realizada no inverno de 2007 em Porto Alegre, por meio de entrevistas abertas com pessoas participantes e informantes. Também foram utilizadas a técnica da observação de reuniões do grupo e a análise de materiais impressos, cartilhas e folders. No que segue, apresento o clube onde foi desenvolvida a pesquisa, depois faço uma análise dos aspectos que acompanham as transações. O seguinte momento é reservado ao tema principal do texto, o problema simbólico do dinheiro e o princípio de equivalência, e, logo após, são traçadas algumas conclusões.
O estudo em um clube de trocas de Porto Alegre
A pesquisa que fundamentou as análises desta exposição foi realizada num clube de trocas da zona norte da capital gaúcha intitulado Clube de Trocas da Zona Norte existente há quase três anos. Este grupo é composto por cerca de dez a doze pessoas. Na realidade, o público pertencente é variável (oscila) e, somando-se os jovens e crianças das famílias que participam, o número é um pouco maior. Os encontros em que acontecem as trocas de produtos são realizados duas vezes por mês em um salão de uma organização de bairro.
As trocas são feitas expondo-se aquilo que cada participante trouxe para o evento em mesas e bancos para que todos possam observar. Paredes brancas, almofadas para sentar e janelas com grades também compõem o cenário. Para que ocorram as trocas, dois mecanismos são utilizados: as moedas sociais e as trocas diretas sem mediação do dinheiro elaborado pelo grupo. A moeda criada por este grupo recebeu o nome de Obirici, fazendo referência a uma lenda indígena e a alguns lugares conhecidos da zona norte da capital.
O clube tem regras claras. Cada participante novo deve trazer produtos quaisquer para serem expostos e trocados por outros; entretanto, somente terá direito às moedas sociais depois de participar de três encontros. Então, são dadas as moedas à pessoa para que possa fazer as transações com o uso deste mediador (comprar e vender). O interessante é que cada um tem direito ao dinheiro quando participa do grupo – ganham-se as moedas pela participação e não pela troca de produtos: é como um elemento inicial em que o sujeito adquire meios que lhe conferem maior poder de compra no interior do grupo. Para os participantes de baixa renda isso é fundamental, pois os relatos dos entrevistados sugerem que estas pessoas chegam ao grupo com quase nada para oferecer – não possuem meios sequer para produzir algo com o objetivo de levar aos encontros.
A organização do grupo precisa contar com membros que controlem a emissão e a circulação de moedas, a presença nos encontros e os produtos oferecidos. Chama-se de EcoBanco o mecanismo que possibilita as operações: é como uma central de controle onde ficam guardadas as notas. Aqui um aspecto chama a atenção quando se parte de um olhar assentado na idéia de propriedade (de bens e também do dinheiro): as pessoas não levam para casa seu dinheiro, uma vez que apenas na feira ele tem valor e função. Assim, um participante é responsável por levar às reuniões o EcoBanco com as notas de cada um. Quando se inicia o evento, ele distribui os envelopes (cada envelope contém o nome do participante e o valor que lhe corresponde, também registrado num caderno por razão de segurança). As pessoas fazem as transações e, quando o encontro termina, o EcoBanco recebe os depósitos novamente, com os valores de cada um reajustados. A moeda continua sendo das pessoas como o dinheiro comum que levamos na carteira, mas a caixa que as guarda impõe barreiras ao livre uso. É transparente o volume de moedas que cada um possui, por isso é possível frear a acumulação.
Nos clubes de troca, as moedas geralmente assumem valores iguais aos do dinheiro oficial. Voltaremos a este ponto mais adiante, mas vale recordar que a moeda social não pode ser trocada em outros espaços, somente nos encontros do clube.
Segundo as entrevistas, é preciso ver as pessoas como “prossumidoras”, isto é, produtoras e consumidoras ao mesmo tempo. Este conceito, forjado nos grupos de economia solidária e nas redes de troca define que todos os indivíduos são capazes de produzir algo para trocar (pães, bolos, artesanato, pintura, cortar cabelo, consertar máquina, cuidar de bebês). Na realidade, alguns entrevistados afirmaram que as pessoas produzem riqueza e não conseguem realizá-la nos mercados, sendo o clube um meio para isso. Para as trocas são também trazidas às feiras coisas usadas que as pessoas não querem mais e que podem ser úteis para outrem. Este fundamento de que todos podem produzir e consumir é apenas um elemento do conjunto de idéias que formam o grupo. Tal como Zelizer (2005a) percebeu, há aspectos ideológicos que se impõem aos que querem participar destes grupos. Contudo, é impossível não considerar a polifonia no seio do clube: nem todos compartilham certos princípios, embora nem sempre externalizem opiniões na frente dos outros. Também pude observar a partilha de um ideário comum. Antes de participar da reunião, pensei que aconteceriam trocas e nada mais. Porém, as pessoas falam muito sobre ideais de conservação da natureza, solidariedade, discriminação da economia de mercado, etc. Tudo isso é articulado à economia solidária e ao uso das moedas sociais. Em mais de um trabalho, Zelizer (2005a, 2005b) mostrou como as pessoas criam circuitos que relacionam bens, valores e idéias, separados de outros como “mundos hostis” essencialmente distintos.
Outras pesquisas sobre o tema podem esclarecer estes aspectos. Num estudo de caso na Noruega, Gran (1998) observou que o sistema Lets é dominado por pessoas que partilham ideais políticos radiacais e parecem ter se envolvido com a moeda social primeiramente por razões ideológicas ou ambientais. A pesquisa conduzida em quatro grupos noruegueses mostrou que a maior parte dos participantes tem emprego em tempo integral e educação universitária. Apesar destes indicadores sobre escolaridade e emprego serem mais comuns nos paises nórdicos que no Brasil, já são um sinal sobre quem conduz as iniciativas nos clubes de moedas locais. Já Williams, na Austrália (1997), constatou certa preponderância de “greens” nos Lets, no entanto também mostrou que um número razoável de participantes pertencia a estratos sociais de baixa renda ou estava desempregado.
Caldwell (2000) encontrou dados muito interessantes nos Lets que investigou no Reino Unido. Sua pesquisa mostrou que apenas 2,4% dos participantes estavam desempregados. Curiosamente, a maior parte das pessoas trocava muito pouco e mesmo assim mostravam-se satisfeitas. Caldwell (2000, p. 8) constatou que para a maioria a motivação da participação é dada por ideários como ecologismo e pensamento alternativo , e que o ecologismo dos discursos é fortemente associado a processos de justiça social . Segundo o autor, isto explicaria a aproximação dos “greens” com as moedas sociais. DeMeulenaere (2000) encontrou aspectos semelhantes na Red Global de Trueque na Argentina, embora a crise econômica neste país fosse severa nesta época.
Através dos depoimentos na pesquisa realizada em Porto Alegre observa-se que os clubes de troca não substituem os mercados formais. As pessoas não conseguem sobreviver dessas trocas e para que isto fosse possível os clubes teriam que crescer em número e tornar o rol dos produtos bastante diversificado. Mas os depoimentos sugerem que há uma complementação de uma economia com a outra. Alguns folders e cartilhas de outros grupos e da Red Global da Argentina também insistem neste aspecto: os clubes ajudam as pessoas a economizar, sem depender estritamente do dinheiro para muitas transações econômicas. Esta comunicação necessária entre a economia do clube e a economia externa parece ser um ponto nodal, cuja força da ocasião é a capacidade de empurrar os sujeitos aos interstícios de ambos sistemas e propiciar um ponto de vista diferente da economia em que vivemos. Uma entrevistada insistiu que o clube não sobrevive se não houver o dinheiro oficial nas vidas das pessoas e, além disto, muitos clubes precisam de financiamentos e recursos. Eles precisam pagar o aluguel ou a limpeza do salão que usam, arcar com a confecção das moedas. Para vencer estes desafios, uma entrevistada concluiu criticamente que o passo seguinte à criação do clube seria a organização de uma moeda circulante local .
Quando a troca extravasa as fronteiras do econômico: rituais e solidariedade
Ao observar os encontros do grupo, imediatamente vêm à mente os fundadores da Antropologia e suas análises dos rituais. Se Durkheim sustentou que os rituais eram sempre vinculados à esfera do sagrado nas sociedades – em oposição à do profano – Leach procurou mostrar que essa dicotomia poderia ser uma construção fictícia. Entre os Kachin da Alta Birmânia, Leach (1995, p. 75-76) mostrou que as mais variadas atividades econômicas eram ritualizadas cotidianamente, como o trabalho nas plantações de arroz, sendo portanto mais interessante para o pensamento antropológico lidar com a idéia de que sagrado e profano não são pólos distintos enquanto totalidades. Entre os extremos, há ações que participam tanto de um como de outro, sendo técnica e ritual aspectos constitutivos de qualquer ação.
Certamente, as perspectivas sobre os rituais se modificaram mais recentemente nas pesquisas antropológicas, especialmente depois das seminais obras de Victor Turner e Stanley Tambiah. Contudo, o importante para o argumento aqui desenvolvido é que o ritual age como “intensificação de pensamentos, de linguagens e de situações sociais comuns” (Anjos, 2006, p. 15); é revelador da realidade social. No ponto de vista de Peirano (2001, p. 8),
Rituais são tipos especiais de eventos, mais formalizado e estereotipado, […] há uma ordem que os estrutura, um sentido de acontecimento cujo propósito é coletivo. [Os rituais] ampliam, focalizam, põem em relevo e justificam o que já é usual numa sociedade.
Os encontros do Clube de Trocas da Zona Norte possuem uma série de momentos que poderiam se aproximar da definição de ritual acima descrita. A reunião inicia com a colocação dos produtos em uma parte específica do salão, geralmente próximos a uma lateral. No centro as pessoas se reúnem e a alguém é posta a tarefa (previamente decidida) de animar o encontro. Cada pessoa pode escolher o que fazer, mas pôde-se observar que não são muitos os “líderes” e que existe uma certa padronização na organização do tempo e do que essa pessoa vai dizer, fazer, recordar e estimular.
Na vez em que fui apresentado ao grupo uma moça foi responsável pela condução da reunião. Ela fez dinâmicas de grupo, tais como a apresentação de cada um do grupo por outra pessoa (a que estava ao lado). Logo após, leu passagens de um livro para estimular uma reflexão sobre as relações humanas. Nesse meio tempo, a apresentação foi muito mais do que uma mera introdução – foi um momento repleto de dádivas de palavras (elogios, demonstração de confiança e de carinho) quando alguém falava de outra pessoa. Até mesmo em relação a mim houve uma tentativa de também realizar isto, embora a pessoa não me conhecesse anteriormente (apenas trocamos algumas palavras minutos antes).
As trocas ocorreram após esses momentos iniciais que tomaram a maior parte do tempo. Foi interessante observar as negociações, bem como os produtos mais requisitados e os menos procurados. A moeda circulou razoavelmente e as conversas eram constantes nos momentos de transação. Cada participante é orientado a vir ao encontro com o produto já marcado com o preço para evitar constrangimentos. Na minha opinião, isso também evitaria uma espécie de equilíbrio entre oferta e demanda (ou seja, o participante querer aumentar o preço durante a sessão), tão criticada na economia de mercado.
Muitos produtos são bem elaborados, como os pães caseiros, os livros editorados por um membro do grupo, a granola de outra. No entanto, outros produtos são perceptivelmente velhas mercadorias empoeiradas que estavam atrapalhando na casa de quem as trouxe para tentar “desencalhar”. Um entrevistado foi bastante enfático em afirmar que é preciso algum controle “para que a feira não vire um brechó”.
Ao final, as pessoas decidiram quem seria o próximo animador e também mostraram entusiasmo com o encontro. Alguns quiseram comentar o encontro e externalizaram preocupações com o “mundo hostil lá de fora”. Ainda me lembro de um dos participantes dizer “aqui não buscamos o lucro econômico, mas lucro social”. Outros concordaram e expressaram outras questões. Antes de irem embora, todos se abraçaram.
A idéia de que o encontro e seus diversos momentos encerram muito mais que os fluxos de mercadorias é essencial para compreender até mesmo o que seja a economia e os mercados. Segundo Mayer (2004, p. 168), o “trueque” não existe puro, ele é imerso em relações sociais e em formalidades culturais. É, inclusive, necessário que se estabeleçam outras relações sociais para que ele exista (isso auxilia a explicar os rituais, os abraços, as palavras). De um certo modo, o fato de que as trocas não são apenas um “toma lá, dá cá” nos mostra por que certos laços sociais são privilegiados para as trocas (as pessoas conhecidas, os participantes do clube de trocas), mesmo que elas possam ser feitas em outros lugares com outras pessoas, ou o sujeito possa vender seu produto ao invés de trocar. Nesse sentido, parece haver um regime de reciprocidade cujo objetivo é o grupo, para além do simples ganho monetário.
Na perspectiva de Zelizer (2005a, p. 297), a criação das moedas locais simplesmente dramatiza o papel significativo que têm as relações de proximidade na vida econômica impessoal atual. Tanto na observação das reuniões como na análise dos folders este elemento chamou a atenção: a percepção que confiança e solidariedade devem estruturar os clubes de troca. Apesar dos problemas e dos discursos não serem homogêneos, o encontro dos membros do grupo enseja um processo criativo. A vida cotidiana atribulada na cidade e o momento de encontro do grupo como um gesto de suspensão me fazia recordar uma espécie de ‘tempo de agora’, no qual Benjamin (1985, p. 229) queria que pudessem ser concentradas as energias – um tipo de paralisação do tempo que explode a linearidade temporal comandada pela economia capitalista.
Em uma reunião, duas pessoas procuraram entrar como novos membros do grupo. Eles estavam bastante curiosos, porém calados; chegaram por intermédio de alguém que havia comentado acerca do grupo e foram recebidos com amabilidade. Um deles chegou no meio do encontro e trouxe consigo um instrumento musical. Esse foi um fato relevante para observar, porque o outro não carregava nada e estava apenas querendo conhecer o grupo. Perguntei-me logo sobre as motivações do primeiro, uma vez que seu instrumento tinha um valor econômico muito alto comparado aos produtos que se costumam trocar. Refleti rapidamente: se fosse eu em seu lugar, como chegaria no grupo? Traria algo ou apenas viria para conhecê-lo? De certo modo, observei algum incômodo dos participantes mais antigos, no entanto não sabia qual seria o desfecho. De uma forma sutil, os participantes mais antigos tentaram falar para ele que seu produto não era usual nas transações, mesmo assim houve quem se interessasse pelo produto – ele queria trocar por um aparelho de som (já chegou com um objetivo claro). Dois entrevistados já haviam me falado que havia pessoas que tinham interesses pontuais nas trocas, e que não preservavam a idéia de grupo, de altruísmo, etc. Pensei que este sujeito poderia ser alguém que queria trocar esse instrumento que tinha em sua casa oportunamente, mas não pude concluir nada. Ao longo do encontro, a animadora fez questão de sublinhar a importância das pessoas perseverarem e “realizarem uma escolha” (nesse momento achei a frase quase religiosa), sempre se dirigindo a estes novos integrantes. Fiquei com dúvida a respeito de se outras pessoas do clube concordariam totalmente com ela, por certos comportamentos que observei, tais como a assiduidade no grupo. Isso não tem nada de negativo em si, apenas mostra que os grupos não são homogêneos. Nessa assertiva referida acima é notável o sentido de interpelação da animadora, recordando a integração de reciprocidade que Polanyi ressaltava em seus escritos. Um sistema de trocas, na concepção de Mayer (2004, p. 168), é um esquema de relações sociais em que “bens tendem a ser trocados repetidas vezes com pessoas conhecidas em momentos e lugares particulares. Há uma tendência retroalimentadora que induz […] o intercâmbio no futuro”.
O valor simbólico do dinheiro e o princípio da equivalência
Uma das questões mais instigantes a serem analisadas é o valor simbólico do dinheiro para estes grupos que, segundo Soares (2006), conseguem desmistificar sua existência, entendendo que é uma construção social e histórica. Essa característica pode ser observada de dois modos: o valor simbólico do ponto de vista de uma noção sociológica de poder e o valor simbólico de criar mecanismos mentais de comparação, quantificação e fracionamento relativos a produtos .
No primeiro modo, o poder do dinheiro se manifesta observando-se pessoas e comparando grupos com recursos econômicos diferentes. O fator central é que o dinheiro agiria como atribuidor de poder nas relações sociais. No clube, pessoas como mais escassas condições financeiras têm menos poder de iniciativa e não se sentem atraídas a participar do grupo que “apenas troca” a partir do mediador moeda social. Uma entrevistada sugeriu que estas pessoas já vivem com pouco dinheiro e que para sua sobrevivência sempre procurar efetivar trocas no cotidiano. Aqui aparece um elemento importante para entender o caso: esses sujeitos fazem pequenas trocas com parentes e vizinhos, sendo o objetivo da vida econômica dessas famílias conseguir o meio circulante, ou seja, ter acesso a um bem que é reserva de valor e equivalente de trocas ao mesmo tempo.
As pessoas de baixa renda observam que o dinheiro é um elemento de poder que obviamente lhes falta, por isso necessitam dele como reserva e capacidade de acumulação (geralmente essas pessoas acumulam algum dinheiro com esforços extraordinários). Outro depoimento obtido durante a pesquisa de campo afirmou que as pessoas mais pobres não conseguem incorporar um dos ideais do grupo: de que todos são produtores e consumidores (“prossumidores”). Ora, não há somente uma percepção de baixa auto-estima (o valor simbólico do dinheiro e o valor simbólico que a pessoa se atribui ), mas a incapacidade de produzir algo, uma vez que os circuitos do clube dificilmente conseguem ser fechados – sustentados apenas por meio de trocas. Para produzir é preciso acessar matérias-primas, que nem sempre se obtêm no clube. Portanto, o dinheiro não age somente na relação econômica e produtiva, ele influencia significativamente as condutas. Seria um equívoco (embora opção fácil e atraente para alguns) considerar que estas pessoas de baixa renda são utilitaristas em suas relações; elas vivem a partir de suas condições. Hart (no prelo, p. 19) afirma que o dinheiro é um meio simbólico de comunicação, ele informa nossa subjetividade e dá expressão concreta aos nossos desejos.
Dois entrevistados relataram que os que mais precisariam (do ponto de vista econômico) das trocas são aqueles que querem lucrar com elas, comportamento que fere o sistema de ideais do grupo. Seriam pessoas que têm dificuldade de se envolver de maneira pró-ativa e que estariam acostumadas a apenas ganhar (doações), conforme comentaram.
É preciso considerar, no entanto, que não é algo fácil acreditar num sistema “rarefeito” quando estão em jogo o trabalho, o dinheiro do dia-a-dia e os problemas financeiros. Diferentemente da Argentina que passou por uma experiência de crise econômica muito expressiva, ou da Bulgária (Chevalier, 2001) que experimentou na década de 1990 uma etapa de transição em que as trocas eram essenciais para a sua economia de precária monetarização, o Brasil vive outra situação. Isso não ocorre somente neste país, como atestam algumas pesquisas sobre moedas locais na Europa, Canadá e Austrália. Caldwell (2000) mostra que nos sistemas de trocas por ele analisados as pessoas mais vulneráveis economicamente trocam menos porque não conseguem enxergar reais benefícios.
Além disto, é necessário introduzir aqui o segundo ponto de análise dessa seção, a equivalência. No segundo modo de valor simbólico do dinheiro examinado este artigo, o princípio de equivalência desempenha papel considerável.
Utilizando-se da proposta de Humphrey e High-Jones (1992), Mayer (2004, p. 167) mostra que a troca é uma transação entre produtos diferentes; não há nenhum critério que possa julgar de fora que uma coisa tenha valor igual à outra. Ocorre a negociação entre as partes, mas sem referência a um valor abstrato ou a um denominador comum entre elas, cada parte simplesmente desejando o objeto da outra; a transação é simultânea, embora também possa haver intervalo de tempo.
Mayer afirma que os valores dos objetos não são referidos a um valor abstrato, mas o dinheiro o que é? Provavelmente Humphrey e High-Jones se referem à idéia de que não há uma objetividade dos valores de consumo ou de uso para além do desejo e da subjetividade dos trocadores, vontades estas presentes em suas mentes na hora do escambo. Contudo, isto não significa que os sujeitos não possam comparar produtos através de critérios que considerem objetivos (número de horas trabalhadas, raridade etc.), bem como criar um sistema institucionalizado baseado na equivalência.
Ricardo e Marx tentaram sustentar que o valor-trabalho era um princípio objetivo que fornecia os valores de trocas às mercadorias, mas sempre foi insuficiente a relação que estabeleceram entre trabalho qualificado e não-qualificado, bem como a relação entre os valores e os preços dos produtos nos mercados. Avanços recentes mostram que há muitas forças sociais que atuam na formação dos mercados, como redes e hierarquias (Abramovay, 2004), e o conceito de valor de troca pode ser estendido, valores estes compreendidos como emergentes de negociações e lutas entre muitos atores localizados em diferentes e estratégicos pontos de uma rede de relações mercantis (Long e Villareal, 2004; Paredes Peñafiel, 2006).
O importante dessas considerações teóricas acima descritas para a discussão aqui desenvolvida é que há esquemas na ação e nas redes de trocas que procurarão dar valores semelhantes ou iguais a produtos que os trocadores tentam permutar, mesmo que não haja um critério externo e transcendente válido. Neste aspecto que incide a moeda social espelhando o dinheiro real estatal.
Observou-se no Clube de Trocas da Zona Norte que o Obirici – a moeda social do clube – é interpretado como um facilitador de trocas. As pessoas pensam a maior parte das transações em termos de moedas. Um dos entrevistados considera que este é um problema no início da participação do sujeito no clube, mas que, aos poucos, é possível se desvencilhar do princípio de equivalência e estabelecer as trocas com mais liberdade. Contudo, a moeda social neste caso seria um contra-senso, uma vez que ela substitui o dinheiro oficial como facilitador e sua reserva de valor é muito restrita. O mesmo entrevistado deu um exemplo interessante. Na cidade de Canoas (RS), já existem dois clubes de trocas, maiores que este analisado aqui. Segundo ele, as trocas avançaram muito em ambos, porém o próprio entrevistado concluiu que o passo seguinte que um grupo de mulheres de Canoas realizou foi a constituição de uma cooperativa para vender produtos nos mercados locais. Embora seja uma iniciativa louvável, o depoimento acaba confirmando a dependência do valor do dinheiro oficial e também a questão essencial dos circuitos econômicos para fora dos clubes até mesmo para mantê-los.Comparado aos objetos, Hart (no prelo, p. 3) mostra que o dinheiro é representado como uma coisa real na qual é investido um poder abstrato. Com os avanços da economia virtual nas últimas duas décadas isto se tornou mais claro. A tese de Hart sobre o poder persuasivo do dinheiro nas nossas vidas pode encontrar ecos – com as devidas proporções – nos trabalhos de Strathern (1998) sobre a Melanésia e na maneira como a monetarização transformou o modo como as pessoas da Papua Nova-Guiné contabilizam objetos – de um sistema em que cada um tinha um valor específico, para outro em que é possível quantificar, fracionar, dividir objetos em valores.Analisando escritos de Spengler, o trabalho de Hart sugere que houve uma grande transformação na sociedade ocidental européia: de um modo de pensar em termos de bens (que sempre são diferentes) para um modo de pensar em termos de dinheiro (Hart, no prelo, p. 6). Não que a abstração seja apenas oriunda do uso do dinheiro; resulta também de longos séculos de insistência sobre a função do pensamento abstrato na filosofia e nas ciências. Mas a economia monetária desempenha papel central nesse processo para Hart, e este autor argumenta que o moderno sistema monetário municia os indivíduos com um amplo repertório de instrumentos para cultivar suas trocas com o mundo e calcular o equilíbrio do seu valor na comunidade. Assim, o poder do dinheiro é dado tanto nas relações sociais na comunidade como também conduz a uma reflexão do sujeito sobre si próprio em termos quantitativos .
Uma entrevistada foi bastante enfática ao dizer que o uso do dinheiro molda o comportamento nas trocas. Observou que isto era de fato um problema, mas que os ganhos dos participantes seriam válidos mesmo assim. Esse depoimento tende a reforçar o que foi analisado no tópico anterior, que as trocas são apenas um momento de uma série de relações sociais que se atualizam nas reuniões e que a economia do grupo está imersa em comportamentos e significados que a extravasam.
Outro artigo resultante de pesquisa com moedas locais coloca questões semelhantes ao encontrado acerca do princípio de equivalência do dinheiro nas trocas. Serra (2006) chama a atenção para o fato da “moeda-tempo” (time currency) servir de medida para valores. Ela defende a tese de que, para funcionar bem numa dada comunidade, estas moedas em forma de tempo devem ser um meio para medir custos. Bem, esse é justamente o elemento que serve como base para o questionamento da idéia de que o princípio da equivalência sustenta as moedas locais. Isto ocorre tanto na equivalência da moeda local com a moeda oficial (paridade) bem como na idéia de que há uma exigência de reciprocidade nas trocas.
Quanto ao primeiro aspecto, é curioso perceber que até isto é realizado com a finalidade de facilitar as trocas – a paridade. É verdade que algumas não são assim, mas a grande parte dos Lets e dos Time-hours de que se encontrou referência funciona dessa maneira.
Quanto ao segundo aspecto, uma outra entrevistada não demonstrou preocupação com este fato. Ela tentou argumentar que não há necessariamente equivalência nas trocas. Definiu que a formação dos preços é um modo de controle do próprio grupo, e também uma forma de poder distribuir as moedas. Na realidade, seu discurso demonstrou que quando não existe a moeda social na mediação das trocas do grupo há uma tentativa de fazer transações mais ou menos eqüitativas. Cada um, segundo ela, deve saber o que lhe agrada para poder estabelecer uma troca, na medida do possível, equivalente. Cabe lembrar, entretanto, o que se depreende da proposição de Mayer antes descrita. Na troca, a equivalência é dada pelos sujeitos, suas subjetividades e desejos – culturalmente situados – condicionando o que cada um considera bom para dar e receber; enquanto que com o dinheiro ou a moeda social existe a institucionalização da equivalência fundamentada na quantificação.
Na seqüência a essa indagação que lhe fiz sobre as trocas, a mesma entrevistada afirmou que a reciprocidade nas trocas e a moeda social são meios de evitar problemas com dons e a não-retribuição. Se lembrarmos o debate que Bourdieu (1996) estabelece com os textos clássicos de Mauss (2003b) e Lévi-Strauss (2003) sobre a dádiva, o primeiro insiste que os dois últimos não deram a devida importância ao tempo entre o dar e o receber, momento em que se instala tanto a incerteza da retribuição como o poder do doador. Enquanto eu tentava pensar em termos de uma vantagem caso o clube vivesse de dons, ela relatava que as dádivas atrapalhariam o funcionamento do clube, pois é necessário um jogo aberto e explícito nas transações do grupo.
Segundo ela, algumas pessoas mais próximas no interior do clube podem se permitir dádivas, visto que mantêm contatos constantes e não precisam cobrar restituições ou pagamentos. O caso dela e de uma amiga assemelha-se a esta situação, entretanto tenho dúvidas se podemos considerar dádivas no sentido mais estrito do termo. Como recorrência, as duas trocam entre si produtos e serviços. Quando uma precisa de algo, a outra não precisa levar o produto da troca no mesmo momento, nem pagar em moeda social Obirici. Há esperança de que a reciprocidade venha a re-equilibrar os trocadores – por isso talvez não sejam dádivas, mas as permutas se estruturam também em tempos distantes e por meio de relações confiança.
Desse modo, apesar das moedas e do dinheiro agirem como modeladores do comportamento dentro e fora do clube, compreende-se que há iniciativas para trocas não-mediadas. Apesar disto, o que percebi realmente foi uma dificuldade em escapar das medidas quantitativas (de valores) já introduzidas pela noção que temos de dinheiro e pela sua importância na vida cotidiana.
Considerações finais
Este trabalho procurou mostrar que a constituição de clubes de trocas caracteriza-se expressivamente associada à implementação de moedas locais próprias elaboradas por estes grupos. Existem, de fato, diversos clubes sem moedas, mas percebeu-se com a pesquisa de campo realizada em Porto Alegre e também com os dados obtidos acerca de clubes no Brasil e no exterior que as moedas são amplamente difundidas.
A justificativas mais repetidas para tal uso deve-se a sua capacidade de dar liberdades nas trocas e ser um meio como o dinheiro oficial permitindo que as pessoas possam ampliar suas transações. Há ainda outro elemento que pode ser citado com fator para a implementação das moedas: elas evitam constrangimentos caso os grupos apenas fizessem trocas e em certas operações algumas pessoas não quisessem aceitar aquilo que fora oferecido pelo outro. Com a moeda, as pessoas podem acumular (até um limite estabelecido) e comprar o que quiser, dentro de um rol de produtos não muito variado.
Muitos dos entrevistados foram enfáticos em dizer que as pessoas que mais poderiam angariar recursos com os clubes têm dificuldades de participar (referindo-se às de baixa renda ou desempregadas). Elas não conseguem ver as reais possibilidades dos grupos, segundo depoimentos. As poucas pessoas desempregadas ou de baixa renda com quem consegui conversar e que pude observar evidenciaram sua falta de interesse, pois o grupo de trocas não dá conta da subsistência familiar. Até que os clubes possam ter um funcionamento mais sistemático (cotidianamente) e com amplitude para os mercados locais (tal como o Banco Palmas no Ceará e o projeto de revitalização do bairro Ruben Berta em Porto Alegre, que também possuem fortes limitações), os que têm maiores problemas na vida financeira concederão poucas possibilidades de engajamento. O exemplo do Clube de Trocas da Zona Norte mostrou que muitos dos participantes são pessoas empolgadas com idéias de conservação da natureza ou críticos da economia de mercado, mas que possuem empregos e não passam por situações de pobreza. Não se pode esquecer a (evidente) economia financeira internacional e seu poder para frear iniciativas locais – os próprios sistemas financeiros nacionais são geralmente inibidores do surgimento de novas moedas (entretanto nunca conseguem controlar por completo pela própria capacidade inventiva das pessoas em realizar transações baseadas em outras formas de contagem: tempo, trocas de serviços etc.).
Ao longo da pesquisa, percebi que os clubes enfrentam dificuldades para crescer em número de freqüentadores. Torna-se difícil animar os participantes, pois as trocas são em quantidade relativamente escassa, e quem participa acaba por ter que se doar bastante (organizar, coordenar, fazer mediação, conseguir produtos com cooperativas de produção). Além disto, há ainda o problema daqueles que querem aproveitar a situação para se desfazer de objetos usados. É preciso observar isto com cuidado, pois está em jogo o discurso dos participantes ativos que pretendem que o clube não seja apenas um grupo de trocas pontuais, mas um espaço de reflexão, relações de proximidade, envolvimento emocional, amizade, trocas afetivas, redes de informação.
O valor simbólico do dinheiro exerce um papel importante neste processo. Para as pessoas, ele consiste num símbolo de poder. Do ponto de vista daqueles que têm baixos rendimentos, parece que ser estimulado a trocar ou inventariar produtos para obter a moeda social não é algo que lhes agrade e interesse.
De outro lado, o poder simbólico do dinheiro está vinculado ao princípio de equivalência e à capacidade que este tem de quantificar, fracionar e dividir os valores dos produtos e dos serviços. Portanto, a pesquisa conduzida em Porto Alegre encontrou resultados sustentados teoricamente nos trabalhos de Hart e Strathern: o dinheiro se reveste de um poder que não é apenas sociológico – isto é, no âmbito das relações sociais e da diferenciação de grupos econômicos – mas que se exerce no pensamento dos sujeitos que o utilizam.
Talvez os grupos pudessem arriscar e estimular seus membros a realizar suas transações para além de um princípio de equivalência fundamentado na moeda, procurando que os próprios produtos e os desejos das pessoas fossem responsáveis pelo interesse que se depositam neles. As trocas poderiam ser sem moeda, isto afastaria um pouco a noção abstrata e o cálculo. Ainda assim a vantagem da moeda continuaria a se apresentar, espelhada mesmo pela economia do dinheiro oficial. Penso que o essencial é que cabe aos próprios clubes fazerem a escolha dos modos de troca, e que a sua existência é um fôlego e ao mesmo tempo uma recolocação crítica das regras do mercado capitalista; embora possuam forças localizadas, são resultados da capacidade inventiva para uma economia desoladora. A questão que este trabalho levanta pode ser condensada em dois desafios: primeiro, observar que efeitos decorrem das transações fundamentadas nas moedas reproduzidas no interior do grupo e, segundo, compreender que por enquanto a economia de mercado circundante continuaria ancorada no dinheiro.
Notas
Grande parte da bibliografia utilizada neste texto pode ser acessada pela Internet. Ver as referências ao final do artigo.
Zelizer (2005a, p. 301) anota que os sistemas de moedas ancorados na moeda nacional tem sido mais utilizado na Europa e no Canadá (embora poderíamos acrescentar Austrália e Nova Zelândia) e os sistemas baseados no tempo (time dollares, Hours de Ithaca) prevalecem nos EUA.
Este artigo possui uma versão disponível na Internet . No mesmo sítio, o autor disponibiliza diversos outros textos acerca das relações entre antropologia, dinheiro e economia.
Uma pesquisa que conduzo no momento pretende mostrar a aproximação entre ideais de conservação da natureza, justiça social e comércio justo nos processos de certificação (criação de selos) na agricultura ecológica.Os usos das moedas dos clubes de trocas acontecem apenas em encontros e feiras. Diferentemente, o circulante tem valor no dia-a-dia é aceito nos mercados de bairros. Existem algumas experiências no Brasil, como o Banco Palmas em Fortaleza e no bairro Ruben Berta, em Porto Alegre. Em ambos os casos, há financiamento com dinheiro proveniente de doações ou recursos de ONGs estrangeiras.
Sobre este último aspecto, o artigo de Strathern (1998, p. 5 e ss.) faz uma discussão muito profícua e consistente.
Seria este um caso da troca de perspectivas, na acepção em que Viveiros de Castro tem escrito? O dinheiro é um ponto de vista? (Viveiros de Castro, 2007, especialmente p. 115). Sobre mercadoria e dádiva como pontos de vista, ver Strathern (2006).Ver também Hart (2007) sobre o poder de síntese que faculta o dinheiro, uma vez que se ele fraciona a experiência, também habilita ações concretas e reais nos mercados. O texto integral pode ser acessado via www .
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O valor simbólico do dinheiro e o princípio da equivalência: um estudo sobre as moedas sociais em um clube de trocas em Porto AlegreTainara Alef Samarra2019-03-02T20:56:54+00:00