Uma interessante etnografia apresentada como trabalho final para disciplina em curso de graduação mostrou um uso muito particular das dependências bancárias, protagonizado por idosos: a ida ao banco, para muitos senhores e senhoras aposentados, era vista como um programa mais de lazer que de obrigação. O pagamento de carnês e contas diversas, a conferência de saldos e extratos (um favorzinho prestado a vários filhos) significava a possibilidade de encontro com outras pessoas nas mesmas condições, de animadas conversas (para desespero dos demais clientes) com os caixas e, no fim, de usufruir daquele cafezinho que algumas agências deixavam à disposição dos usuários, evidentemente degustado por quem anda meio sem pressa… Até casos de uma boa soneca foram flagrados durante a pesquisa de campo, nas confortáveis poltronas destinadas à espera de atendimento
Outro trabalho de conclusão de curso estudava a relação entre moradores do entorno de modernas rodovias e a empresa responsável por sua construção e manutenção. Exemplo clássico de «não lugar», planejada para o eficiente e rápido deslocamento de «passageiros» e «viajantes», a rodovia não considera «pedestre» como usuário do «sistema». No entanto, tendo em vista os constantes atropelamentos em determinados pontos, a empresa viu-se obrigada a construir passarelas e entrar em contato com a população «lindeira». 
O estudo mostra os conflitos, contatos e negociações entre duas visões, a  da rodovia, e a dos moradores. Estes últimos apropriaram-se dela segundo seus próprios padrões, daí resultando desde o uso do canteiro central como campo de futebol, para passeio de bicicleta e banhos de sol, até o aprendizado e utilização dos call-boxes, sistema de telefonia destinado a emergências rodoviárias, mas rapidamente transformado em meio de comunicação com serviços de ambulância, polícia, etc., para atendimento da população do entorno
Como último exemplo pode ser citado o uso de um equipamento urbano sem dúvida alguma também protótipo de «não-lugar»: o elevado Costa e Silva, mais conhecido como «Minhocão», via expressa  exclusiva para veículos na direção leste-oeste, na região central da capital paulistana. Objeto de polêmica desde sua construção em 1971 por causa dos  efeitos de degradação produzidos nas imediações, a partir de 1989 vem sendo usado pelos moradores dos prédios vizinhos, nos fins de semana – quando fica fechado ao tráfego -, como espaço de lazer para caminhadas, passeios de bicicleta,  encontros.
Estes são alguns exemplos apenas, entre muitos outros, de usos e arranjos não previstos pelas regras e destinação do espaço. Tais experiências constituem caso particular de uma questão mais geral – o tempo livre -, cujo significado, alcance, variedade e modalidades de utilização constituem temática privilegiada para pensar a dinâmica cultural das grandes cidades (MAGNANI, 1984; 1992(a); MAGNANI e TORRES, 1996).
Tanto as formas  convencionais como aquelas mais inusitadas  atestam a vitalidade das práticas urbanas, nesta dimensão particular, a do lazer e sociabilidade. Pode-se concluir que a experiência da rua, não obstante os conhecidos problemas dos grandes centros urbanos, não morreu: diversificou-se, assumiu novas modalidades, adaptou-se a novas circunstâncias, estabeleceu outros diálogos. Para dar conta dessas transformações, talvez seja necessário desdobrar a clássica categoria de rua de forma a poder descrever  a gama mais variada de experiências que a escala das grandes cidades contemporâneas propicia.
Em trabalhos anteriores, citados mais acima, desenvolvi as noções de pedaço, trajeto, mancha, circuito, pórtico  justamente para pensar alguns processos da  atual dinâmica cultural urbana. Não cabe, por certo, repetir aqui o que já foi exposto naqueles textos; interessa apenas mostrar como se articulam. 
A noção de «pedaço», elaborada a partir de pesquisas em  bairros de periferia, aponta para a existência de um espaço social que se situa entre a esfera da casa e a da rua. Com base em vínculos de vizinhança, coleguismo, procedência, de trabalho, estabelece uma forma de sociabilidade mais aberta que a fundada em laços de família, porém menos formal e mais próxima do cotidiano que a ditada pelas normas abstratas e impessoais da sociedade mais ampla. É no âmbito do pedaço que se vive e compartilha toda sorte de  vicissitudes que constituem o dia-a-dia, nos momentos de lazer, devoção, participação em atividades comunitárias e associativas,  troca de favores e pequenos serviços; e também dos inevitáveis  conflitos, disputas
A vida na cidade, no entanto, não se restringe às experiências do cotidiano que transcorrem no âmbito do bairro. A circulação em direção a e através de territórios mais amplos dá-se por meio dos trajetos -percursos determinados por regras de compatibilidades – que abrem o particularismo do pedaço a novas experiências, situadas fora das fronteiras daquele espaço, conhecido,  onde se está protegido por regras claras de pertencimento.
A cidade, ademais, não se oferece para uso e desfrute como uma totalidade indiferenciada, ou então repartida em unidades discretas: naqueles territórios mais impessoais das regiões do centro, é possível distinguir a existência de áreas claramente demarcadas pela oferta de  determinados bens ou serviços: são as manchas, áreas contíguas do espaço urbano, dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam, competindo ou complementando-se, uma atividade ou prática predominante.  O circuito, por seu lado, cumpre as mesmas funções da mancha; a diferença está na forma de inserção, uma vez que não apresenta o caráter de contiguidade espacial. Assim, por exemplo, é possível distinguir os circuitos dos cines de arte, das livrarias, dos brechós, de espaços esotéricos, da cultura black, do agito gay, do movimento rapper e muitos outros, constituídos por pontos espalhados (mas que mantêm algum tipo de relação entre si) pela cidade.
Estas categorias, num certo sentido, recobrem o registro do que Marc Augé (1994) denomina de «lugar antropológico», no contexto de sua discussão sobre o conceito de «não lugar», já mencionado. Para construir este último, o autor coloca em relevo suas diferenças com o conceito de «lugar», tradicionalmente associado, na literatura clássica, a uma cultura localizada no tempo e no espaço. «Lugar antropológico», contudo, é mais específico e apresenta uma conotação suplementar, na medida em que é significativo não só para os que o habitam ou dele usufruem, mas para quem, de fora, procura entendê-lo. É, simultaneamente, princípio de sentido e princípio de inteligibilidade; daí sua importância para a descrição etnográfica na medida em que constitui via de acesso privilegiada para o entendimento do comportamento dos usuários. 
Marc Augé faz questão de diferenciar, ainda, o «lugar antropológico» dos «lugares de memória» de Pierre Nora:  enquanto através desses últimos apreende-se «a imagem do que não somos mais (…),  o habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história» (1994:54) ; em outros termos, seu significado está ancorado não na memória do que já foi, mas  nas  práticas que o mantém.
Como estou trabalhando com a dimensão do lazer e das práticas de encontro e sociabilidade, não aparece nas categorias que utilizo (com exceção de pedaço, no contexto do bairro), a referência ao habitante, como ocorre na conceituação de Marc Augé. O que aquelas, em suma,  permitem é: (a) descrever  recortes no espaço, (b) recortes estes que são significativos em virtude de práticas e formas de apropriação  por parte dos agentes, (c) e que terminam por determinar padrões coletivos de comportamento e regras de sociabilidade.
No caso do pedaço, as marcas no espaço que  estabelecem as fronteiras, ainda que visíveis, são reconhecidas e identificadas principalmente por seus membros – os quais, quando mudam de ponto, levam junto consigo o pedaço. A exclusividade que caracteriza esta forma de pertencimento deriva mais do manejo dos códigos que operam o reconhecimento mútuo do que da apropriação de um espaço físico.
Já na mancha, freqüentada por gente de diferentes pedaços, a dinâmica é outra: sua forma de inserção  na paisagem urbana é mais clara e estável pois, demarcada a partir da interrelação entre equipamentos, edificações e vias de acesso, funciona como  ponto de referência concreto para um número mais abrangente de usuários. Sabe-se o que se quer buscar, em determinada mancha, mas não necessariamente o quê ou quem vai ser  encontrado: esta particularidade é que garante a  possibilidade (e o encanto) do imprevisto – dentro de certos padrões, já conhecidos e escolhidos
A atualidade da discussão sobre a questão do «lugar» no cenário metropolitano pode ser comprovada, ainda, em outro campo, intimamente relacionado com a cidade: a arquitetura. Numa série de ensaios reunidos em recente volume, Otília Arantes (1995) analisa algumas obras, tendências e teorias que compõem o atual estado do debate nessa área. Situando a discussão no âmbito da cultura contemporânea, cujo traço mais saliente é a presença avassaladora da mídia, a autora vai explorar a interrelação entre essa «nova civilização midiática» e a arquitetura contemporânea, mostrando que, se vivemos sob o signo do olhar, sob o império da imagem e no âmago de uma civilização do simulacro, o palco dessa irrealidade é a metrópole moderna. (1995:19/20)
No entanto, contrapondo-se ao formalismo extremado da arquitetura pós-moderna – revivalismos, high tech, «frívola», new modern, etc. – registra-se uma alternativa, até mesmo uma resistência: a arquitetura do lugar, tentativa de ressemantizar a cidade através da produção de espaços carregados de sentido, em busca da reanimação do genius loci, o espírito do lugar
Ainda neste registro – não, porém, como resultado de um projeto arquitetônico e sim de intervenções no tecido urbano – cabe mencionar o texto de Glauco Campello, sobre a necessidade de se preservar, na metrópole, a existência de núcleos de espaços próximos que abrigam o convívio, conciliando-os com as amplas estruturas urbanas impostas pelo desenvolvimento da sociedade (1994). 
Ilhas de convívio, lugar, pedaço – estas e outras noções correlatas apontam todas para a particular realidade da dinâmica urbana contemporânea, principalmente nos grandes centros: o gigantismo de suas instalações e estruturas não significa, necessariamente, a destruição de formas de sociabilidade que supõem outro tipo de arranjo espacial. Ao invés de se prognosticar a progressiva destruição de formas tradicionais de vida e convívio, em razão da escala das megacidades, é preciso ver nessa mesma escala o fator que amplia e multiplica as possibilidades de uso e desfrute das instituições e equipamentos – de lazer, saúde, trabalho, cultura  – inviáveis em escalas menores.
As práticas urbanas de sociabilidade que a metrópole enseja talvez não se enquadrem mais na clássica imagem do footing  em volta do coreto, na  praça central da cidade interiorana: costume sem dúvida de nostálgicas ressonâncias, mas limitado diante da abertura e das possibilidades que oferece a grande cidade – e que constituem seu apelo.
A experiência paradigmática da rua, por conseguinte, não desaparece, mas multiplica-se em mil formas e arranjos: refugia-se na pracinha fake e corredores dos shopping-centers, estabelece-se nas  galerias do centro, esquenta nos salões de dança da periferia e ferve nos clubs dos Jardins, vibra na Avenida Paulista em dia comemoração de título,  ocupa o Minhocão, homenageia guias e orixás em certas esquinas, renova-se semanalmente nas feiras livres de cada bairro e anualmente nas feiras de arte e festas dos santos padroeiros, mantém-se, enfim, nos múltiplos espaços convencionais de lazer, de convivência, de culto, de encontro – constituindo  pedaços, consolidando manchas, inventando circuitos.

As cadeiras, de volta.

Pode-se concluir, portanto, que as transformações na cultura urbana das grandes metrópoles contemporâneas não se dão  necessariamente numa só direção, seja no sentido da deterioração dos laços de convivência – em virtude de um inevitável caos urbano – seja na substituição desses laços por contatos e relações virtuais na dimensão «hiperreal» construída por signos e imagens. Diferentemente do que às vezes se imagina e teme, até mesmo na esteira de determinadas  análises, a «boa» experiência urbana, simbolizada pela rua, subsiste.
Não, porém, como sobrevivência de antigos costumes pinçados aqui e ali na qualidade de reminiscências de um tempo irremediavelmente passado: as experiências urbanas típicas das grandes cidades são o resultado justamente da própria escala dessas metrópoles.
Por certo sua complexidade impõe o conhecimento e manejo de determinados códigos que permitem o uso e aproveitamento dos recursos que oferece. Assim como o homem do campo detém um conjunto de conhecimentos, informações e habilidades perceptivas que o capacitam a orientar-se e interpretar o meio onde vive, a socialização (formal e informal) do citadino dota-o de uma «competência» específica; tal é a «cultura urbana», em sentido estrito (e restrito)
Na realidade,  só o plural é que daria a essa expressão seu verdadeiro alcance. Não, entretanto, no sentido de «sub-culturas», próprias de ghettos. A diversidade cultural, antes que uma soma ou agregado de usos e costumes, é um processo contínuo de trocas, trocas intensas proporcionadas pela existência de inúmeros padrões culturais que resultam continuamente em novos arranjos, combinatórias e experimentos. 
Circunstâncias e fatores diversos como  o legado de fluxos migratórios, presença de grupos étnicos, influência de tradições religiosas,  atuação de economias de escala, diferentes níveis de acesso à  escolaridade,  à informação,  ao consumo  – variáveis em graus de determinação e temporalidade – fornecem os elementos que interagem nessa imensa circularidade proporcionada pelas dimensões da grande cidade.
Se, de um lado, o processo de homogeneização que decorre do próprio funcionamento das grandes estruturas (reforçada pelo decantado processo da globalização) impõe padrões massificadores, de outro  – na ponta de cá, no contexto da vida diária, das dinâmicas locais – reinventa-se e repõe-se continuamente a diversificação. 
E é no contexto dos pequenos grupos  que melhor se nota tal dinâmica, mormente nessa cada vez mais importante esfera da vida contemporânea, o tempo livre – preenchido com cuidados com o corpo,  cultivo da mente,  redescoberta da dimensão do espírito,  desfrute de bens culturais sofisticados. Com isso não se está referindo ao fácil e chamativo recurso de identificar aqui e ali  exóticas «tribos urbanas» , tão ao gosto da mídia  – punks agressivos, drag queens espalhafatosas – elegendo-as como emblemas da pós-modernidade. 
Esses e muitos outros grupos, que sem dúvida fazem parte do cenário contemporâneo, parecerão menos exóticos quando considerados não de forma isolada, mas em contextos adequados. Há casos, porém, em que o pertencimento a grupos faz-se de maneira menos episódica: as atitudes, os padrões de consumo, os gostos, crenças e vínculos de sociabilidade revelam a presença de um «estilo de vida» claramente diferenciado, compartilhado e ancorado em espaços precisos da paisagem urbana
O trânsito entre o local e o global, entre o pequeno grupo e as grandes estruturas de comunicação, mostra que a metrópole abriga, paradoxalmente, o padrão aldeia (a lógica da comunidade, do pedaço, do contato próximo) e o da cidade (ênfase no anonimato, na multidão, na mistura). A grande cidade acolhe a «comunidade» mas impele a sair para a «sociedade»: não se trata de escolher entre uma e outra, pois a característica da cultura e sociabilidade próprias da metrópole é a articulação e passagem constantes entre ambas.
É neste contexto que  a cena das cadeiras na calçada pode continuar sendo a imagem  da boa experiência  urbana.  Em vez de mera evocação saudosista de um tempo que só subsiste na memória, pode ser a  expressão da vontade de manter práticas, laços e redes que garantem uma importante dimensão da sociabilidade  ao lado, claro está, de outras alternativas de contatos e relações  que resultam da própria  escala da metrópole. Devidamente articuladas, essas duas dimensões permitem otimizar o uso da cidade em todas as suas possibilidades contribuindo, ao lado de outras condições, para a tão desejada melhoria da qualidade de vida de  seus moradores.

Notas
Entrevista concedida pelo teatrólogo Amir Haddad para o número 23 da Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional dedicado ao tema «Cidade» (1994).
Realizada em Istambul, Turquia, de 4 a 14 de junho de 1996.
O conceito de cultura urbana é bastante controverso; vide, por exemplo, a posicão de  Castells (1983) para quem o termo não é  mais que uma construção ideológica da Escola de Chicago. Aqui, a expressão está tomada num sentido restrito, descritivo, como conjunto de códigos  induzidos por e exigidos para o uso de equipamentos, espaços e instituições urbanas e desempenho das formas de sociabilidade  adequadas. Abrange, por exemplo, o conjunto de conhecimentos necessários para usar determinados  recursos oferecidos pela cidade e que vão desde o reconhecimento dos sinais e placas referentes ao trânsito e transporte coletivo passando pela habilidade no manejo de aparelhos eletrônicos que permitem a manipulação de caixas eletrônicos, locomoção no  metrô, terminais informatizados de localização em shopping-centers, até o conhecimento mais especializado da oferta e formas de acesso a bens e serviços específicos, públicos e privados,  espalhados pelas diferentes regiões do espaço urbano 
Durante a já citada reunião do Habitat 2  foram selecionados pela ONU 400 projetos bem sucedidos: o Brasil aparece em  primeiro lugar, contribuindo com 10% desse total. (Folha de São Paulo, 16/06/96). A revista  NEWSWEEK de 10 de junho de 1996, cujo título e chamada de capa eram, sugestivamente, URBAN BLISS –  Why Megacities Like São Paulo Arent’t So Bad, com base em depoimento de especialistas,  entre os quais  Janice Perlman, conhecida autora de estudo sobre favelas brasileiras, traz uma matéria sobre a mudança de enfoque a respeito das megacidades (aquelas com mais de dez milhões de habitantes). Segundo a reportagem, ainda que as previsões mostrem que dobrarão de número nos próximos anos, de 12 para 25, a qualidade de vida nessas megalópoles, ao contrário do que se previa, estará melhorando. A esperança de vida nas grandes cidades é mais alta do que nas pequenas  e na zona rural e, ao contrário dos  habitantes desta última, os moradores das grandes cidades estariam mais bem servidos por sistemas de  água e esgoto, teriam à sua disposição atendimento médico de melhor qualidade,  melhores oportunidades de educação e mais empregos.
Referência às idéias de R. Venturi sobre uma arquitetura em chave publicitária, (ou «ecletismo de beira de estrada»)  a partir do efeito visual produzido pelas imagens dos painéis, outdoors e anúncios das ruas de comércio de Las Vegas. (ARANTES, 1995: 20, 40; FEATHERSTONE, 1995:141) 
«Ruas e suas calçadas – os principais espaços públicos de uma cidade – são seus órgãos vitais mais importantes. Pense-se em uma cidade, e o que vem à mente? Suas ruas»  (JACOBS, [1961]1992: 29). 
Mesmo num contexto tradicionalmente associado com a vida comunitária, uma aldeia indígena – no caso, bororo – onde obviamente,  não há ruas, observa-se o mesmo tipo de oposição entre o centro da aldeia e o círculo das casas; um, espaço tipicamente masculino (onde fica a casa dos homens) e o outro, feminino. Centro e periferia, por sua vez, formam um só termo (aldeia), que se opõe a roça: centro, casa, roças, finalmente, opõem-se  a floresta. As categorias mais englobantes, aqui, formam a oposição Natureza versus Cultura: «Se pensarmos na oposição Natureza/Cultura, extensamente desenvolvida por Lévi-Strauss e outros autores estruturalistas, poderemos caracterizar o centro da aldeia como sendo o domínio da cultura por excelência, onde têm lugar as representações dos aroe,os heróis míticos que deram origem à sociedade bororo. Em contrapartida, as casas se constituem  no espaço onde se dão as grandes tranformações naturais: a procriação e o envelhecimento, a transformação dos alimentos crus em cozidos. Além disso, é no espaço da casa que são criados os laços de substância (Da Matta, 1976) que unem os indivíduos co-residentes. Esses laços de substância comum advém do fato de que essas pessoas compartilham do mesmo alimento, moram sob o mesmo teto, participam da mesma substância vital – rakare – contida nos fluidos trocados: sangue, sêmen, sangue menstrual e leite materno». (CAIUBY, 1983:69). Como se vê, trata-se de um conjunto de relações que podem ser assimiladas  às descritas por Tönnies para caracterizar comunidade.
«Ao lado luminoso da vida pública em comum [Hannah Arendt] atribuiu a liberdade e a individuação, ao passo que no âmbito privado viu o seu contrário, a estreiteza da família, hierarquizada, dominada pela autoridade incontrastável do patriarca, confinada às dimensões estreitas de uma casa, também lugar etimológico (oikós) da reprodução econômica da vida, reino do «labor» e da necessidade – aqui privado era sinônimo de privação» (ARANTES, 1995:114-115) 
«As estações obrigam ao contato próximo e variado, mas também anônimo e fugidio, e são o lugar característico do tipo de interação – carregado de estímulos sensíveis e sala de encontros – que iria conformar o sentimento da vida nas grandes cidades».  (HABERMAS, 1987:118).
Ver a noção de «desencaixe», de Anthony Giddens (1991).
Segundo Marc Augé (1994), três  transformações aceleradas do mundo contemporâneo – uma relativa ao tempo, outra à individualidade e a terceira ao espaço – são as responsáveis pela  figura do excesso, característica da situação de supermodernidade. No caso da superabundância espacial, esta «se expressa nas mudanças de escala, na multiplicação das referências energéticas e imaginárias, e nas espetaculares acelerações dos meios de transporte. Ela resulta, concretamente, em considerávies modificações físicas: concentrações urbanas, transferências de população, multiplicação daquilo a que chamaremos ‘não-lugares’, por oposição à noção sociológica de lugar, associada por Mauss e por toda uma tradição etnológica àquela de cultura localizada no tempo e no espaço. Os não-lugares  são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta.» (1994:36,37). Cfr. também  FEATHERSTONE, 1995.
Etnografia da Agência Rafael de Barros, Banespa, trabalho apresentado por  Clarice Nonaka para a disciplina «Seminários de Antropologia I» , curso de Ciências Sociais (FFLCH/USP), 1º semestre de 1988.
Morreu na contramão atrapalhando a via – trajetos e descaminhos no conflito rodovia/ comunidades lindeiras, trabalho de aproveitamento de Maria Tereza Araujo Mello para a disciplina «Pesquisa antropológica no contexto urbano», Curso de Ciências Sociais, FFLCH/USP, 2º semestre de 1992.
A noção de «pedaço», aplicada em outro contexto – não mais na periferia, mas no centro – mostrou que as regras de sociabilidade que instaura também são encontradas em espaços desvinculados da moradia e vizinhança: «A diferença com a idéia do pedaço tradicional é que aqui os frequentadores não necessariamente se conhecem – ao menos não por intermédio de vínculos construídos no dia-a-dia do bairro – mas sim se reconhecem enquanto portadores dos mesmos símbolos  que remetem a gostos, orientações, valores, hábitos de consumo,  modos de vida semelhantes.» (MAGNANI, 1992 [a]:195).
Numa mancha de lazer, por exemplo, os equipamentos podem ser bares, restaurantes, cinemas, teatros – os quais, seja por competição ou complementação, concorrem para o mesmo efeito. Uma mancha caracterizada por atividades ligadas à saúde, por exemplo, geralmente se constitui em torno de uma instituição tipo âncora – um hospital –  agrupando os mais variados serviços (farmácias, clínicas particulares, serviços radiológicos, etc.). E assim por diante. 
Para marcar a diferença, Marc Augé exemplifica com alusão a festas, procissões ou cerimônias que já não mais existem, mas que podem ser celebradas, às vezes até numa antiga capela restaurada, hoje utilizada para um eventual concerto ou espetáculo. «Essa encenação não ocorre sem provocar sorrisos perplexos ou comentários  retrospectivos  de certos velhos habitantes da região (…). Espectadores de si mesmos, turistas do íntimo, eles não saberiam imputar à nostalgia ou às fantasias da memória as mudanças   que atestam objetivamente o espaço no qual eles continuam a viver, e que não é mais o local no qual viviam». (1994:54) 
O habitué da mancha de lazer do Bixiga, por exemplo, sabe perfeitamente o tipo ou estilo de música, de espetáculo e até de pessoas que lá poderá encontrar e que diferem dos de outras manchas  como  a de Moema (zona sul), a da rua Franz Schubert (Jardins) ou da rua Bento Freitas (centro), para citar algumas bem marcadas por seus traços característicos. 
Não deixa de ser significativa a forma assumida pela exposição que constitui o tema do primeiro ensaio, «Arquitetura Simulada»: fachadas, de autoria de vinte arquitetos, dispostas numa  rua artificial – Strada Novissima – na  Bienal de Veneza de 1980. Boutade, provocação, brincadeira, não importa: o apelo da rua continua. 
A autora  aponta, no entanto,  para o enfraquecimento dessa tendência quando encampada pelo  oficialismo, ou delegada ao  «capital em pessoa».
Sem evidentemente querer fazer nenhuma apologia de uma suposta «cultura da pobreza», no sentido de Oscar Lewis (1987), nem minimizar a violência da situação, cabe reconhecer que até mesmo os mais desamparados  desenvolvem estratégias para o uso dos recursos que a cidade possui. Entrevistas com moradores de rua mostram que essas pessoas, ao conhecer e manipular as regras de funcionamento e horários de restaurantes,  lanchonetes, instituições de caridade e assistência dispõem de uma extensa rede que lhes  garante a alimentação básica. E o dinheiro da esmola? «Para o cigarro e a cervejinha», asssegurou um entrevistado.  Alojado provisoriamente em  albergue, um dos  «trecheiros» (designação dada aos  desabrigados) declarou à reportagem da  Folha: «Na rua, a gente ganha muita roupa e comida dos crentes e espíritas. Gosto de me vestir bem. São Paulo é uma terra querida, que aceita a gente. A sociedade nos despreza, mas a cidade não.» (Folha de São Paulo, 24/06/1996). 
Para uma análise crítica dessa noção, ver MAGNANI, 1992 (b).
É o caso de grupos que cultivam uma forma de religiosidade genericamente denominada de «esotérica». Ainda nesse terreno, pode-se citar  a significativa junção entre lazer e  vivência religiosa em grupos de jovens neo-evangélicos e de carismáticos na Igreja Católica.

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Originalmente publicado como capítulo da coletânea Sociedade Global: Cultura e Religião, Petrópolis, Editora Vozes, 1998