Os estudos contemporâneos de antropologia política têm mostrado o aumento da ação artística coletiva e das mobilizações sociais por meio da arte. A conexão das esferas da produção e do consumo, corroborada pela globalização econômica e pelas estratégias de organização e flexibilização do trabalho, ativou resistências mundiais como os “Dias de Ação Global” na década, de 1990. Protestos transnacionais, como o “Carnaval Contra o Capitalismo”, realizado em junho de 1999 nos centros financeiros de 40 cidades do mundo e, depois, os protestos realizados em Seattle contra a Organização Mundial do Comércio, entre muitos outras, apontaram novos caminhos para o ativismo político do século XXI, marcados pela expressão festiva e visualmente plástica.
Embora não sejam vistas como «arte», as manifestações políticas pela via da arte se expressam em criativas formas estéticas a respeito dos planos simbólico, social e político. Atualmente, é cada vez mais intensa a articulação entre as práticas festivas e artísticas de grupos urbanos e a ação política. As intervenções artísticas e performances nas cidades, marcadas por disjunções econômicas e sociais, têm sido associadas à tentativa de dar sentido ao «caos» urbano por meio de novos estilos de engajamento político, fazendo de artistas agentes políticos portadores da energia catártica capaz de ressignificar as experiências individuais e coletivas, integrando a vida urbana à transcendência da arte. Este processo se dá por meio da reinterpretação da “cidade subjetiva” que envolve tanto os níveis mais particulares do indivíduo quanto os sociais. A apropriação artística da cidade como obra coletiva intervém de maneira polissêmica na produção cultural, recobrando os espaços (físicos, sociais e políticos) por meio de ações arrebatadoras, transitórias, poéticas e transgressoras, desafiantes ou jocosas, usando o espaço «frio» das ruas, denunciando problemas locais, nacionais e mundiais.
– Como surgiu o RUASP? ELZA COHEN: O RUASP é uma dedicação minha de amor a São Paulo, uma cidade cosmopolita, que brilha dia e noite, que tem uma diversidade cultural absurda, uma cidade veloz, cheia de pressão, de personalidade e de possibilidades.. E como eu amo andar pelas ruas dessa cidade, fotografando e observando tudo com os olhos de quem acabou de chegar e está encantado, percebi também a falta de eventos mais informais pros novos artistas se manifestarem e interagirem uns com os outros e com o publico, misturar as diferenças num so espaço…
– Qual a proposta final, ou objetivo, deste «evento»?ELZA COHEN: O principal objetivo é atender as pessoas que procuram eventos gratuitos de música e arte e que têm vontade de freqüentar ambientes abertos e livres. Jovens e adultos, famílias, formadores de opinião, artistas, skatistas, intelectuais, jornalistas, transeuntes etc, numa reunião que expresse a enorme diversidade popular da capital paulistana. E a proposta final é preencher as lacunas dos espaços públicos, estimulando a interação coletiva com a autenticidade cultural, sem os tradicionais mimetismos aos quais estamos submetidos.A criação de uma rede urbana de artes na capital paulistana pode construir um novo modus vivendi na cidade.– Quem são os responsáveis e que apoios tem?
ELZA COHEN: O RUASP é uma idealização minha; eu mesma produzo, faço captação e a curadoria artística toda, portanto sou a maior responsável, mas sempre conto com uma equipe de colaboradores para realizar o evento. E sobre apoios, na primeira edição eu contei com o apoio do Governo do Estado de São Paulo e do Deputado Turco Loco «Alberto Hiar» E para a próxima edição ainda estou na fase de reuniões tanto para agendar a data e para captação com alguns órgãos do governo do estado e com empresas particulares.– Quem participa?
ELZA COHEN: Artistas de diversas expressões da arte urbana, da música até as artes visuais, esportes, dentre outras manifestações culturais. Unindo o novo e o tradicional, reprocessando tudo.– Por que a Rua?
ELZA COHEN: Porque a rua é um lugar democrático.
– A partir dos anos de 1980, muitos grupos optaram pela arte como modo de ação social e de desenvolvimento da cidadania. Essa proposta visava incluir socialmente a parcela da população urbana radicalmente excluída do acesso ao pensamento artístico e dimensões sensíveis da humanidade. Você observa, de algum modo, as mudanças efetuadas por estas ações? As cidades se sensibilizaram?
ELZA COHEN: Sim, com certeza! Temos exemplos reais de surgimento de tantas organizações não-governamentais voltadas pras artes e pra educação….Exemplos: Casa do Hip Hop (SP) Afrorregae (RJ) Nós do Morro (RJ), Nós do Cinema (RJ) , Rosas de Ouro (SP) com o projeto que ajuda crianças e adolescentes em situação de risco e ações pessoais dos próprios artistas como Marcelo Yuca (ex O Rappa e atual F.U.R.T.O), Nelson Triunfo (SP), os grupos Contrafluxo e Slim Rimografia (todos eles trabalham em ongs dando aulas) pra citar só alguns….
– Como contrapor arte a violência, não apenas violência física, mas, principalmente, a violência cotidiana da falta de recursos, de ar puro, escolas, respeito? Por que «arte na rua» em vez de «trabalho na rua» ou «polícia na rua»? ELZA COHEN: A arte na rua não deixa de ser uma forma de trabalho na rua para os artistas e a arte na rua impõe o respeito até de quem tá mal intencionado. Raramente se tem noticia de assaltos ou qualquer tipo de violência física em eventos culturais na Rua. A arte amolece o coração das pessoas. Na arte todos se reconhecem de alguma forma e a respeitam como uma coisa sagrada. E a policia na rua, que seria para proteger o cidadão, muitas vezes vem para repreender apenas. Acho que a policia que trabalha nas ruas deveria ser mais qualificada e mais educada para lidar com material humano.Como diria «Mahatma Gandhi», «a única revolução possível é dentro de nós.»
– Numa cidade como São Paulo, onde as pessoas passam correndo pelos espaços e mal vêem o que lhes cerca, como podemos pensar e ocupar o espaço da rua?ELZA COHEN: O primeiro passo é re-educar as pessoas a olharem com novos olhos pras ruas, porque elas mesmas não estão a costumadas a ver esse tipo de lazer. Então, o subconsciente delas está programado pra sair do trabalho e ir correndo pra casa, pra faculdade ou para algum lugar fechado, protegido….– Grafiteiros e pichadores são, freqüentemente, acusados de «sujarem» a cidade e vandalizarem monumentos. No caso dos grafiteiros, muita gente diz que eles deveriam usar telas em vez de muros. No caso dos pichadores, que deveriam ser presos. O que você pensa disso?
ELZA COHEN: Grafiteiros transformam os muros de concretos em mais humanos com sua arte. Para mim eles trazem uma nova paisagem contrapondo a falta de natureza real para se ver e sentir. Tornam a «concrete jungle» mais colorida e alegre, transformando o morto concreto cinza em vida e arte. Telas em galerias e graffites nos muros, sim! No caso dos pichadores, é também uma forma de expressão urbana de protesto; uma forma de articulação social. A transgressão explica um pouco isso.A única coisa que me incomoda é a falta de respeito com o patrimônio público, que é para o beneficio de todos nós. Acho que ao invés de serem presos é preciso buscar entendê-los e saber quais são suas reais reivindicações através de sua pixação….
– Quando você propõe que a arte vá às ruas, isso significa reivindicar o direito à cidade como obra do cidadão?ELZA COHEN: Exatamente. Porque uma coisa que eu observo muito é que o governo e prefeitura de São Paulo investem muito em praças bonitas, com jardinagens, plaquinhas com sinalização «não pise no jardim» etc etc., mas esquecem de pôr um banquinho pro cidadão sentar e contemplar a cidade; esquecem de pôr um palquinho pra pequenas apresentações, um banheiro público, lixeiras , etc etc…– Como as diferentes artes se encontram na rua? A rua é cenário ou também atriz quando pensamos na cidade?ELZA COHEN: Na rua tudo interage mais naturalmente; até mesmo as diferenças são amenizadas. A rua é cenário e atriz ao mesmo tempo.– Uma cidade barulhenta como São Paulo, pode ter, como na Europa, música e músicos na rua?
ELZA COHEN: Claro, desde que respeitamos as normas dos horários de silêncio.
– Vocês se preocuparam em saber como a vizinhança dos locais dos eventos recebe e percebe o acontecimento? E o público, como reage?ELZA COHEN: Sim, claro! Isso é muito importante: acrescentar benefícios à vizinhança e não trazer problemas. Normalmente eu procuro locais mais distantes de áreas residenciais, justamente para não correr o risco de possíveis reclamações de barulho, antes de «fechar» o local. Faço todo um estudo. Passo várias vezes no local para entender o perfil do público que transita por ali, penso na segurança do local, no estacionamento, facilidade de acesso, etc etc…– Como você avalia os resultados do RUASP?
ELZA COHEN: Os resultados foram ótimos! Nenhuma violência registrada; tudo aconteceu na maior harmonia, mesmo o evento tendo sido realizado na praça Cívica Ulisses Guimarães, no Parque Dom Pedro, que é um lugar meio abandonado e habitado por moradores de rua.Os próprios moradores de rua interagiram com o evento e, inclusive, um deles subiu ao palco durante o show do MC Marechal (RJ) para reclamar de sua condição de vida de indigente. O público o escutou com atenção, se emocionou e aplaudiu. Mas senti falta de maior apoio dos órgãos de segurança do Estado, como da Guarda Municipal, e de policiamento da Policia Civil, das quais solicitamos e foi confirmado o apoio. A sorte é que não teve nenhuma manifestação de violência no dia do evento e tínhamos bastantes seguranças particulares contratados para dar segurança ao público. O evento começou ao meio-dia e foi até as 24hs com uma média de público rotativo de mais de 8 mil pessoas .Ali eu pude ver que é possível, através da música e da arte na rua, juntar classes sociais e culturas diferentes e todos conviverem pacificamente e ainda trocarem suas experiências e idéias.– Quais os seus projetos futuros em relação a «dar sentido à rua»?ELZA COHEN: Os meus projetos futuros serão, através do próprio R.U.A.S.P, educar o público a freqüentar mais as ruas, praças e a contemplar mais a cidade. Preserva-la como se fosse o seu bem. Para o seu próprio bem… Levar cada vez mais diversidade de estilos de arte e musica para se apresentar na rua de graça para o publico.Entrevista concedida a Rita Amaral em janeiro de 2007.