Conceito
O primeiro contraste, que aliás esteve na origem da proposta, foi sugerido pela comparação entre duas imagens: uma, que retratava o quase vazio da paisagem oitocentista; a outra – emaranhada, densa – foi captada por meio de uma tecnologia então inovadora, a câmera do satélite Landsat. Era impressionante a mancha urbana de São Paulo, destacando-se na paisagem: aliás, só mesmo do alto do satélite teria sido possível abarcar suas dimensões e visualizar suas bordas. O desafio, então, foi atravessar essa mancha, aqui de baixo.
Não se tratava de um trabalho de cunho jornalístico nem, evidentemente, de uma pesquisa científica: o propósito era deixar-se impregnar pelas sensações produzidas pelas múltiplas vozes, sons, cheiros, cores, espaços, edificações e o próprio ritmo da metrópole, cuidando para que esse bombardeio fosse filtrado pelo olhar de cada especialista. Assim, em vez de conceitos, análises exaustivas ou interpretações complexas, o que se produziu foi um conjunto de relatos, entremeados de metáforas. O desafio era articular todos esses relatos sobre a dinâmica e o espaço urbano – tomando a cidade em seu conjunto, no decurso de uma semana e no transcorrer de uma caminhada contínua – com base na troca de impressões entre os viajantes em seu convívio diário. Não havia tempo nem condições para refinar análises, corrigir o estilo, consultar muitas fontes.
Esta foi a experiência que serve de inspiração, estímulo e contraponto para reeditar a Expedição São Paulo, quase vinte anos depois e em função de uma data muito especial, a celebração dos 450 anos de fundação da cidade.
São Paulo mudou, nesses anos: a população cresceu, alterou-se o perfil do mundo da produção e do trabalho, do ritmo da ocupação do solo, do cenário político; muitos problemas se agravaram e também houve ganhos em vários aspectos. Esse quadro de transformações tem sido objeto de inúmeros estudos, análises e diagnósticos e com base neles têm-se estabelecido caminhos, propostas e alternativas.
E as respostas da população, suas iniciativas e estratégias de vida? É possível perceber mudanças, nesse plano? O propósito da expedição é justamente servir de antena para captar sinais, rastrear indícios, identificar aqui e acolá pistas muitas vezes só reconhecidas pelos próprios protagonistas, nos limites de seu cotidiano. A escala da cidade impede que todos os seus meandros sejam conhecidos. E, no entanto, seus moradores, de uma maneira ou outra, descobrem formas de transitar por esses meandros e nem sempre essas formas são fáceis, brandas. Ao contrário: alguns desfrutam de amplo acesso a bens, equipamentos e serviços enquanto grandes segmentos vêem-se desprovidos, muitas vezes, das condições mínimas e indispensáveis a uma vida digna. São os excluídos, os vulneráveis, como consta dos estudos e diagnósticos.
Não é preciso nenhuma expedição para comprovar esse quadro em seu contorno mais geral e identificar os fatores explicativos e indicadores de ordem macro sociológica e econômica. Tampouco se trata de um alegre mergulho na fragmentação; quando se propõe uma viagem por dentro da cidade o que se pretende é ir além dessas alternativas, não para provar alguma tese ou buscar a comprovação de questões pré-estabelecidas, mas para dispor-se a reconhecer outro horizonte e perceber a palpável e efetiva existência de redes sociais, iniciativas localizadas, arranjos coletivos, sistemas de trocas, projetos em parcerias, pontos de encontro, formas de auto-proteção, de representação, de associação – sem os quais a vida social, nas suas múltiplas dimensões, já há muito estaria impossibilitada, no cenário dessa megalópole.
Tal é o objetivo da Expedição São Paulo nessa nova versão; ela tem a seu favor a memória da anterior, da qual mantém o caráter experimental, lúdico, de exercício. Não substitui outros instrumentos: é apenas mais uma forma de tentar conhecer a cidade e desvendar alguns de seus segredos por meio de uma metodologia muito particular.
Seu pressuposto é o confronto de diferentes perspectivas e técnicas de observação e registro: em primeiro lugar o olhar diferenciado dos especialistas que perscrutará ângulos específicos, em busca de pistas e cujo resultado deverá estar consignado em seus textos finais, ainda que não conclusivos; a pesquisa de campo de estudantes na coleta de documentos, imagens e informações sobre grupos, associações, instituições, espaços e objetos significativos, material que mais tarde deverá constituir o acervo para exposição no Museu da Cidade.
E finalmente, a participação de alguns moradores muito especiais que não precisam fazer a viagem: a longa vivência, o conhecimento acumulado e a ligação com a cidade fazem deles testemunhos privilegiados do processo de transformação; sua leitura traz uma outra temporalidade, em contraste com a avalanche diária e ininterrupta de informações que os viajantes deverão enfrentar.
Mais concretamente, a “Expedição São Paulo 450 anos” consiste na viagem, a partir de um roteiro previamente estabelecido, de duas equipes completas – especialistas, pesquisadores, documentaristas – que se deslocarão, uma no sentido leste/oeste, outra no sentido norte/sul durante uma semana inteira. As equipes serão acompanhadas por profissionais de comunicação (televisão, jornal, rádio e internet), encarregados de fazer o registro e transmissão das impressões colhidas durante todo o percurso sobre a cidade, seus habitantes, seus trajetos, locais de moradia e sociabilidade, trabalho e lazer e as incontáveis, inesperadas e criativas respostas às condições concretas de vida com que se deparam nesta São Paulo de 450 anos.