1 – Um antecedente ilustre: as ruas de Paris
Uma das mais sugestivas referências para pensar a rua enquanto símbolo e suporte de sociabilidade é sem dúvida a imagem das ruas de Paris de meados do século XIX com seus personagens, comportamentos e incidentes vividos e cantados pelo poeta Charles Baudelaire, cuja experiência, retomada nos célebres textos de Walter Benjamin, não cessa de inspirar novas leituras. Tal é o caso de um autor mais recente, Marshall Berman, para quem «o novo boulevard parisiense foi a mais espetacular inovação urbana do século XIX, decisivo ponto de partida para a modernização da cidade tradicional». (BERMAN, 1989, p. 145).
Os bulevares faziam parte de um projeto mais amplo da reforma urbana desencadeada por G.E. Haussmann, prefeito de Paris, que botou abaixo centenas de edifícios, deslocou milhares de pessoas, destruiu bairros inteiros, mas … «franqueou toda a cidade, pela primeira vez em sua história, à totalidade de seus habitantes. Agora, após séculos de vida claustral, em células isoladas, Paris se tornava um espaço físico e humano unificado». (idem, ibidem, p.146)
Berman está falando da «aventura da modernidade» e descrevendo a forma emblemática e visível de uma experiência resultante de processos que vinham sendo gestados desde há muito. O autor, evidentemente, não desconhece o contexto mais amplo dessa experiência, nem se deixa seduzir apenas pelo glamour dos novos cafés, restaurantes, lojas, terraços e calçadas parisienses. Ao analisar o que denomina de «cena primordial» – tema do poema «Os olhos dos pobres«, de Baudelaire, ressalta que ela revela as ironias e contradições na vida da cidade moderna: trata-se, com efeito, do inesperado, momentâneo e incômodo encontro entre personagens de mundos separados, o romântico par que desfrutava do novo café na esquina de um novo bulevar e a família de pobres que apreciava, extasiada, a beleza do estabelecimento.
É que as vias rasgadas por Haussmann no velho tecido da cidade medieval, permitindo os novos fluxos e as novas experiências, tornaram também visíveis e próximos outros atores sociais, as então «classes perigosas» (CHEVALIER, 1978) cuja presença nas ruas não seria atestada, em ocasiões posteriores e em distintos contextos, apenas pelo incômodo olhar.
Sem levar adiante uma necessária e mais completa análise do fenômeno, cabe sinalizar, nos limites deste texto, que as conseqüências das contradições vislumbradas pelos protagonistas daquela cena primordial chegaram a tal ponto que décadas mais tarde, frente à inadequação do desenho urbano diante das formidáveis transformações induzidas pelo desenvolvimento capitalista – rapidez dos deslocamentos de veículos, volume de tráfego, heterogeneidade funcional, novas tecnologias e necessidades, aumento da população e outros fatores mais – posiciona-se outro movimento de reforma, a do urbanismo racionalista.
Seu mais ilustre representante, Le Corbusier, afirmou: «Precisamos matar a rua»! A proposta é conhecida: contra a confusão, a mistura e a falta de racionalidade seria preciso garantir espaços cuidadosamente separados para morar, circular, divertir-se, trabalhar – as necessidades básicas que a cidade da «Carta de Atenas» deveria satisfazer.(LE CORBUSIER, 1989).
2. A rua que interessa
Pois justamente essa rua que se quis matar é que desperta o interesse do olhar antropológico: ela é «boa para pensar» (LEVI-STRAUSS, 1975). É a rua que resgata a experiência da diversidade, possibilitando a presença do forasteiro, o encontro entre desconhecidos, a troca entre diferentes, o reconhecimento dos semelhantes, a multiplicidade de usos e olhares – tudo num espaço público e regulado por normas também públicas. Este é o espaço que se opõe, em termos de estrutura, àquele outro, o do domínio privado, da casa, das relações consangüíneas. (DA MATTA, 1985) Mas – é lícito perguntar – existe, ainda, uma rua desse tipo? Como encontrá-la, por exemplo, no contexto de uma metrópole como São Paulo, cuja escala já nada tem a ver com a cidade de Baudelaire e seus dândis, flâneurs, boêmios, poetas e nem mesmo com a daquela idealizada por Le Corbusier?
Com efeito, o dado da experiência cotidiana mostra um quadro de contrastes exacerbado pela heterogeneidade e desigualdade social e cultural, pela fragmentação e compartimentação de espaços de moradia e vivência, pela violência, pela degradação e perversa distribuição dos equipamentos coletivos. Centro e periferia, favelas e condomínios fechados, mercado de ambulantes e shopping-centers, cortiços e mansões, o carro individualizado e transporte público deficiente, o deprecio e a miséria… a lista de contrastes parece não ter fim. Sabe a romantismo anacrônico pensar em «rua, suporte de sociabilidade», nesse contexto.
No entanto, tudo depende de que rua se está falando. Certamente não é a rua definida de forma unívoca a partir do eixo classificatório unidimensional (vias expressas, coletoras, locais, binárias, etc.) dado pela função de circular. A rua que interessa e é identificada pelo olhar antropológico é recortada desde outros e variados pontos de vista, oferecidos pela multiplicidade de seus usuários, suas tarefas, suas referências culturais, seus horários de uso e formas de ocupação. A rua, rígida na função tradicional e dominante – espaço destinado ao fluxo – às vezes se transforma e vira outras coisas: vira casa (SANTOS e VOGEL, 1985), vira trajeto devoto em dia de procissão, local de protesto em dia de passeata, de fruição em dia de festa, etc. Ás vezes é vitrine, outras é palco, outras ainda lugar de trabalho ou ponto de encontro.
Uma classificação com base em múltiplos eixos não produz tipologias rígidas porque não opera com espaços ou significados unívocos e sim com sistemas de relações: a prática social dos atores, que opera esses sistemas de classificação abrindo-os ou fechando-os é o que mantém e enriquece a diversidade da dinâmica urbana, a qual, «além de ser uma propriedade das cidades, deve ser reconhecida como o princípio que as torna cidades» (SANTOS e VOGEL, op. cit., pg. 78).
Se esta é a rua que interessa – sem esquecer a dura realidade da vida cotidiana nos grandes centros urbanos, já apontada – então fica claro que se está falando não da rua em sua materialidade, mas em experiência da rua. Aí então é possível recuperar a novidade introduzida pelos bulevares de Paris e criticar a ausência de esquinas em Brasília; contrapor as regras do condomínio fechado e fortificado às relações no âmbito de uma vila que subsistiu em meio à verticalização; lamentar a falta de segurança que impede as pessoas de usufruir do centro da cidade e protestar contra a abertura de vias que destroem praças, largos, cantos e becos.
E porque está-se falando não da rua em si, mas de experiência da rua, então é possível também descobrir onde, em meio ao caos urbano, ela se refugiou – já não como espaço de circulação mas enquanto lugar e suporte de sociabilidade. Talvez se descubra, por exemplo, que para determinados grupos e faixas etárias e em determinados horários seja o espaço do shopping-center que ofereça a experiência da rua; para outros, recantos do centro como galerias e imediações de certas lojas é que constituem o local de encontro, troca e reconhecimento; na periferia, um salão de baile nos fins de semana, ou a padaria no final do dia são os pontos de aglutinação; às vezes, um espaço é hostil ou indiferente durante o dia, mas acolhedor à noite. E assim por diante.
Esta é a riqueza que caracteriza a experiência urbana e que a rua, em sua relação metonímica com a cidade, evidencia. Não se pode ler a cidade a partir de um eixo classificatório único: é preciso variar os ângulos de forma a captar os diferentes padrões culturais que estão na base de formas de sociabilidade que existem, coexistem, contrapõem-se ou entram em confronto no espaço da cidade.
Só que para puxar o fio dessa rede é preciso treinar o olhar, superando momentaneamente a condição de usuário; senão, corre-se o risco de apenas responder aos múltiplos e incessantes estímulos da metrópole, responsáveis pela sensação de defesa descrita por Simmel como blasé (SIMMEL, 1987). Por detrás da aparente desordem e do caos urbano existem regularidades – no espaço, nos comportamentos, nos estilos de vida – que uma leitura antropológica pode revelar.
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