Caminhando na chuva

Era um sábado tipicamente curitibano, diriam alguns: chuva miúda, persistente e fria. Mas, que fazer? O exercício tinha sido marcado e, após as recomendações (teórico-metodológicas) saímos para a rua – a rua Quinze, e começamos pelo primeiro segmento: imediações da praça Osório, coreto, Boca. De acordo com as recomendações, era preciso estar atento ao cenário, de olho nos atores, para poder identificar e desvendar as regras. E o trajeto era de praça a praça. Por causa do  tempo, porém, a caminhada  – meio truncada, oscilando  entre corridas em busca de abrigo  e  pausas para observação sob marquises – rapidamente levou ao ponto final previsto, a praça Santos Andrade. Lá, dividimos o espaço das escadarias da Universidade com outras pessoas, aparentemente  buscando refúgio da chuva. Quem seriam?  De um lado, um pessoal meio punk, ou dark; de outro, um grupo bastante homogêneo, parecia excursão. Iriam eles para onde? Com aquela chuva? O jeito era de alguma comunidade paroquial, e aquela ali, sem dúvida, devia ser uma freira.

Seria mesmo? As hipóteses variavam até que Solange resolveu tirar a dúvida e encarou: era uma turma de pedagogia, em fim de curso, que tinha combinado tirar a foto de formatura aproveitando como cenário as clássicas linhas da Universidade…

E  a Solange? Ah, era aluna do curso de especialização «Levantamento de Informações para Planejamento Urbano», assim como a Alba, Claudio, Cristiane, Denise, Reginaldo, Renate, Samia, Sandramara, Sony, Tadeu – todos membros daquela primeira ida a campo que, mesmo sob a chuva, comprovou, entre outras coisas, que a «etnografia de um espaço não pode ser senão o que ocorre nele«. A rua, espaço público, é lugar de encontro com o diferente, com o estranho; é suporte de muitas apropriações, espaço  de reconhecimento e sujeito a negociações, de forma tácita ou explícita: se os personagens – por seus sinais externos e comportamento público (roupa, emblemas, postura, gestos) – não oferecem uma chave para seu entendimento, é preciso abordá-los. Como Solange fez. O que permitiu, por sua vez, que o grupo observado também fizesse suas indagações sobre nós próprios.

Este artigo é um comentário sobre o que aconteceu durante o tempo que compartilhamos – aulas, seminários, exercícios práticos, intervalos para o café, avaliação final – durante o transcorrer da disciplina sob minha responsabilidade no curso de especialização já citado, promovido pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC. 

 

O olhar antropológico

Era um primeiro exercício e, seu objetivo, uma tentativa de treinar o olhar a partir de um ângulo diferente. Os participantes da caminhada sem dúvida conheciam a cidade e, como arquitetos,  tinham todos um discurso articulado sobre aquele e outros espaços urbanos. O que se propunha era apresentar um outro ponto de vista, chamar a atenção  para outros aspectos, com o objetivo não de substituir a perspectiva habitual, mas de enriquecê-la. A partir de conceitos, métodos e modos de operar da Antropologia.Antropologia, porém, evoca lugares distantes – no tempo e no espaço – com personagens exóticos, ritos desconhecidos. Que teria a ver com algo tão familiar como a rua Quinze? Tão conhecida, tantas vezes percorrida, já sem segredos? Talvez aqui esteja o ponto de partida para se entender a especificidade desta disciplina, forjada no estudo de pequenas comunidades, as  chamadas «sociedades primitivas»  ou, mais modernamente, «sociedades de pequena escala».

Diante de povos com costumes e padrões culturais radicalmente diferentes dos seus, o antropólogo é treinado para observar e registrar cada ritual, hábito, gesto -por mais insignificantes que possam parecer.  Sabe  que podem parecer desprovidos de sentido para quem ainda não detém as chaves do entendimento daquela cultura. À custa de paciente observação, indagações sobre tudo e todos e presença constante – aos poucos  o que num primeiro momento era visto como estranho, exótico, desprovido de significação, começa a fazer sentido: o pesquisador despoja-se de seus modos de ver  – e às vezes, de julgar –  procurando assumir o olhar do outro.

Não se trata, contudo, de substituir uma forma de olhar por outra, a do observador estrangeiro pela do nativo, supostamente mais autêntica, mas de  uma postura que procura incorporar os diferentes olhares, as muitas versões, os vários comentários, nem sempre consensuais. Se a cultura, longe de constituir uma coleção de objetos, crenças, hábitos, mitos, práticas coletivas, é antes um código que dá significado a esses objetos, crenças, práticas etc., não é tampouco um código fixo, imutável e isento de contradições. Na realidade, mais do que uma cultura -sempre idêntica a si mesma, «autêntica»- em situações concretas o que se tem são  processos, dinâmicas culturais  específicas.

Uma das técnicas que os antropólogos usam para sua imersão nesses processos culturais vivos, diferentes daqueles a que estão habituados por sua própria origem é a conhecida «observação participante». Tomando parte do cotidiano da população que estuda, participando de seus ritos, ajustando-se a seus hábitos alimentares, normas de convivência, o pesquisador vive uma situação onde  observa «de dentro» e, com isso, apreende os padrões que explicam o comportamento no contexto imediato em que eles ocorrem.

Pensando no objeto «clássico» de estudo  da antropologia, as sociedades de pequena escala, é possível imaginar uma imersão deste tipo. Mas, no caso das sociedades modernas, como captar sua dinâmica? Por definição elas constituem sociedades divididas em classes e grupos sociais  com interesses muitas vezes antagônicos, com diferenças étnicas e regionais, pluralidade de crenças, complexa divisão técnica e social do trabalho. Numa palavra: os padrões culturais, longe de apresentarem  homogeneidade são múltiplos, diferenciados e não raro conflitantes entre si. A pergunta que se faz, então, é: pode a Antropologia, com instrumentos de pesquisa e categorias interpretativas forjados a partir do estudo das sociedades tribais, dar conta da dinâmica cultural das «sociedades complexas»? Como aliar a descrição minuciosa, a atenção para cada detalhe, o contato face-a-face em busca do significado de uma prática qualquer –  características da  pesquisa etnográfica –  com  a complexidade da vida moderna, principalmente nas grandes e superpovoadas metrópoles?

Existem algumas precauções que a antropologia urbana procura tomar e uma delas diz respeito à forma como encara seu «objeto» de pesquisa. Se diante de uma cultura radicalmente diferente da sua a atitude do antropólogo é no sentido de procurar transformar o «exótico», ou melhor, o que lhe aparece inicialmente como «estranho», sem sentido – porque ainda não conhecido –  em familiar, o caminho do pesquisador que enfrenta sua própria sociedade é inverso: trata-se, aqui, de transformar o familiar, o que já é (aparentemente) conhecido, em estranho, de forma a escapar à armadilha do senso comum.

O segundo cuidado que se toma é resistir à tentação de encarar o objeto de pesquisa escolhido – este ou aquele bairro, tal ou qual seita religiosa, instituição social ou movimento popular – como se constituíssem uma «aldeia», nos moldes de algumas das sociedades tradicionalmente estudadas pelos antropólogos. No caso das sociedades complexas, seja qual for o recorte escolhido, é preciso levar em consideração a malha de relações que mantém com a sociedade envolvente: a dinâmica da rua Quinze não se esgota no seu perímetro, assim com o significado mais amplo de uma comunidade religiosa afro-brasileira vai além dos limites do terreiro. O desafio é manter  as características da pesquisa etnográfica -a tradição da análise minuciosa, do contato prolongado, da busca de relação  direta com os informantes- sem perder de vista o quadro mais amplo no qual os fenômenos culturais se desenvolvem nas sociedades modernas.

Os instrumentos

Não se tratava, porém, aqui, de uma pesquisa antropológica stricto sensu, o que suporia um longo período de observação e contato com o objeto de estudo. Era antes um experimento procurando incorporar algumas das regras que presidem a prática etnográfica, ajustando-as ao tema e ao pouco tempo de que se dispunha. Assim, ao invés da tradicional «observação participante», optou-se por outros instrumentos: a caminhada, a observação, a grade classificatória. Começando pelo primeiro deles, não era qualquer tipo de caminhada, mas de acordo com o texto que foi discutido em aula, uma  cujo ritmo 

«… deveria obedecer a um timing que a distinguisse do andar apressado e alheio do usuário habitual, assim como do passeante descompromissado. No primeiro caso, o do usuário, o percurso é um meio para se atingir algum ponto: assim, ele recolhe apenas as informações estritamente necessárias para seu objetivo, tais como sinais de trânsito, fluxo de carros, evitação de obstáculos, de outros transeuntes, etc. Para o usuário habitual, o espaço é familiar. No caso do turista ou do passeante, existe a observação do entorno só que sujeita ao sabor dos imprevistos e ao caráter errático da caminhada. O pesquisador, ao contrário, mesmo numa caminhada de reconhecimento, tem um plano pré-estabelecido e seu caminhar deve ser mais lento que o do usuário e mais regular que o do passeante» (MAGNANI, 1991:43).

Durante a caminhada, a observação devia ser contínua e seguindo o fluxo do andar e parar. Sistemática, mas não exaustiva. A regra é deixar-se impregnar pelos estímulos sensoriais durante o percurso. Deve-se estar atento principalmente à materialidade da paisagem: relação entre espaços vazios e construídos, disposição das edificações e equipamentos, escala, volumetria, ruídos, cores, cheiros. Não se trata de buscar o inusitado, o inesperado mas, ao contrário, o reiterativo, o padrão, a norma. A delimitação prévia do percurso e a cobertura do trajeto em sua totalidade sem interrupções é condição para se captar a diversidade de uma rua, por exemplo, sem se deixar levar pela fragmentação  que, à primeira vista, ela parece exibir. Deve haver uma ordem, um ritmo, regras. Os usuários obedecem a essa ordem sem necessariamente dar-se conta disso, pois o padrão está internalizado. Ao pesquisador cabe identificar tais regras.E para evitar a dispersão do olhar sujeito a uma multiplicidade de estímulos, durante a caminhada, propôs-se a seguinte grade de classificação destinada a dirigir, desde o início, a observação: cenário / atores / script ou regras.

Isto porque etnografia não é uma mera descrição, coleta de dados brutos a serem posteriormente trabalhados: o que se observa e a forma como se ordenam as primeiras observações já obedecem a algum princípio de classificação e, se não se propõe algum, o que vai presidir e orientar esse primeiro olhar é o do senso comum. Que é o que, precisamente, se pretende evitar.

O cenário não é, nesta perspectiva, um conjunto de elementos físicos, nem deve sugerir a idéia de um «palco» que os atores encontram já montado para o desempenho de seus papéis. Aqui, é entendido como produto de práticas sociais anteriores e em constante diálogo com as atuais – favorecendo-as, dificultando-as e sendo continuamente transformado por elas. Delimitar o cenário significa identificar marcos, reconhecer divisas, anotar pontos de intersecção – a partir não apenas da presença ou ausência de equipamentos e estruturas físicas, mas desses elementos  em relação com a prática cotidiana daqueles que de uma forma ou outra usam o espaço: os atores.

Com relação a estes últimos, trata-se de detectar tipos, construir categorias, determinar comportamentos – agrupando, separando, classificando. Serão moradores, trabalhadores, passantes, usuários, transeuntes, manifestantes  – segundo o enfoque escolhido e a  orientação da pesquisa.  Se a observação direta é o instrumento para captar o cenário e também para obter um primeiro levantamento dos atores, uma classificação mais precisa e a obtenção de dados  e informações mais completos fazem-se por meio de entrevistas, questionários, e histórias de vida.

As regras ou script constituem a etapa final da análise: os atores, naquele cenário, interpretam papéis, seguem um roteiro. São essas as regras que dão significado ao comportamento e através delas é possível determinar as regularidades, descobrir as lógicas, perceber o ordenamento. Identificando os movimentos, os fluxos, as diferentes formas de apropriação,  é possível chegar a padrões mais gerais que dão a chave para a compreensão dos comportamentos, permitindo separar o que é público do que é privado, distinguir o sagrado do religioso – e suas relações – perceber os espaços preferencialmente femininos e os masculinos etc. É o que se quer: chegar ao significado, com todas as suas nuances, em toda sua riqueza, em toda sua complexidade. 

 

O que se viuO trabalho de campo não se resumiu, evidentemente, àquela primeira caminhada sob a chuva. Observações feitas em outros sábados e também durante a semana permitiram colher dados mais diferenciados e, por conseguinte, fazer uma leitura mais rica da rua Quinze. Sempre como exercício, ou seja, levando em conta as limitações de tempo tanto para a parte prática como para as discussões posteriores. Pretendo, neste item, «ler a leitura» dos alunos, ou seja, fazer alguns comentários a partir dos trabalhos finais apresentados  para avaliação.

Como já foi dito, a rua Quinze era já familiar a todos, seja como usuários, seja como profissionais; tratava-se de suscitar uma nova forma de olhá-la e a  questão inicial foi a de sua segmentação. 

«A primeira tarefa que se coloca para uma pesquisa antropológica voltada para questões ou problemas característicos da vida urbana é delimitar suas unidades de análise. Como não são dadas de antemão, é necessário destacá-las do fundo impreciso da  ‘realidade’ tal como é vista pelo senso comum. (…) as descontinuidades significativas no tecido urbano não são o resultado de fatores ‘naturais’, como a topografia ou de intervenções normativas como o traçado de ruas, zoneamento, etc. Tais descontinuidades são produzidas por diferentes formas de uso e apropriação do espaço» (MAGNANI, op.cit. pg.42).

Renate e Denise distinguiram cinco segmentos na rua Quinze, delimitados, respectivamente, pelas transversais Ébano Pereira, Dr. Muricy, Marechal Floriano, Barão do Rio Branco, Praça Santos Andrade.  Monsenhor Celso e Presidente Farias não foram entendidas, por elas, como marcos significativos. Sua leitura, contudo, não se limitou a reproduzir a divisão física das ruas: cada segmento é marcado por tipos característicos e atividades correspondentes. Assim, por exemplo, se o primeiro segmento apresenta, entre outros,  um caráter masculino e  político, o quarto segmento é marcado por uma romaria  feminina pelas diferentes lojas de calçados e roupas; por outro lado, se naquele a presença da Boca Maldita dá o tom e reforça o caráter masculino, não se pode deixar de registrar um ponto de referência feminino, de encontro, constituído pela entrada e imediações da Mesbla.

Já Cristiane, Samia e Sony dividiram a rua Quinze em três segmentos: da praça Osório até Dr. Muricy, desta até Marechal Floriano e daí até a praça Santos Andrade. A rua Barão do Rio Branco e Presidente Farias foram classificadas de obstáculos, pois as consideraram do ponto de vista do fluxo contínuo dos pedestres.

Alba, Sandramara e Solange tomaram a rua Quinze como uma unidade, sem subdivisões: os cortes significativos foram dados pelos inúmeros personagens que, com suas atividades, fazem dela um contínuo e diversificado espetáculo.

Claudio e Reginaldo tampouco seccionaram o trecho  para análise. Sua leitura, mais global, procurou interpretar a rua Quinze em sua relação com a cidade, relação metonímica  – (…) «e a rua se confunde com a própria cidade, onde o centro, a cidade é a XV«.

Finalmente Tadeu, apesar de reconhecer alguns segmentos, estabelecidos pelas transversais Dr. Muricy, Marechal Floriano, Monsenhor Celso, Barão do Rio Branco e Presidente Farias, trabalhou com duas grandes divisões que chamou de rua/rua e rua/casa: a primeira, também qualificada de rua/homem –  é onde se compra, se vende, por onde se anda rápido, e não se perde tempo: a outra, rua/mulher  – que acolhe e protege, é a sala de estar,  lugar do encontro, da prosa, da leitura dos jornais expostos nas bancas. A rua/rua (…) «começa a acontecer devagarinho… a rua alarga-se após cruzarmos a Muricy; parece um boca enorme a engolir o fluxo enlouquecido de pedestres a serviço: é a primeira barreira que, de certa forma, marca a transposição para o público, vindo do privado. É o umbral, o vestíbulo da rua/rua«.

Qualquer que tenha sido o número de segmentos visualizados – cinco, três, dois, ou só um – em todos os casos houve uma tentativa de transcender a divisão sugerida pelo recorte físico das transversais. Podia-se até partir delas, mas o que se buscava era um outro critério capaz de explicar melhor a diversidade e dinâmica do trecho escolhido. A polêmica em torno do significado da rua Monsenhor Celso foi elucidativa: que está lá, ninguém duvida; mas, constitui um «obstáculo»? Não seria antes um «ponto de fuga»? Mais – não teria até mesmo  um papel particular, enquanto trajeto de ligação entre duas praças, Tiradentes e Carlos Gomes? Percebeu-se, assim, que está principalmente em outro registro a chave para reconhecer recortes e fluxos significativos: são os personagens e suas atividades os responsáveis pela dinâmica e particular feição daquela paisagem urbana que, nem é preciso repetir, constitui seu cenário. Na verdade, são elementos de um mesmo processo e um não se entende sem o concurso do outro.

Não resta dúvida que aumenta o nível de dificuldade quando se procura construir unidades significativas incorporando os personagens e suas práticas: é  tarefa que exige mais tempo de observação, estabelecendo uma base para comparações a partir de um espectro mais amplo – manhã / tarde / noite; semana / fim de semana; sábado / domingo, etc.

Pistas foram  vislumbradas a partir do já conhecido, daquilo que já é familiar: a presença do mímico, a banquinha do PT, os freqüentadores do bondinho (os de dentro e os de fora), os engraxates, o pessoal da Boca, os vendedores de loteria, os grupos de estudantes – os que passam e os que permanecem, os que vendem e os que compram, os que mostram e os que apreciam, os que trabalham e os que passeiam: aos poucos o empírico e o particular vai sendo agrupado. E as impressões começam a ser nomeadas: a «sala de visitas» opõe-se aos «pontos de fuga», a romaria que ziguezagueia por entre lojas femininas até nos nomes – Xereta, Binoca, Chamuna, Fabulosa, Genia, Paulistana, Cintia, Marisa etc.  do quarto segmento – pode ser vista também como cabotagem de curso mais longo, pois é só dobrar a esquina em direção à praça Generoso Marques que a deriva  continua, loja após loja. Bom, aí já é outra caminhada…

Em busca de regularidades capazes de dar conta do múltiplo e do aparentemente sem ordem ou nexo, o passo seguinte é recorrer a pares de oposição que oferecem  princípios de ordenação: masculino / feminino; casa / rua; trabalho / lazer; público / privado; sagrado / profano  e assim por diante: um sistema de espaços só existe em conexão com um sistema de valores e ambos em relação com um sistema de atividades. (SANTOS, 1985).

Uma classificação com base nesses eixos de oposições não produz tipologias rígidas porque não opera com espaços unívocos e sim com sistemas de relações: às vezes, o espaço do trabalho vira lazer, o do passeio é usado como lugar de manifestação, o âmbito do masculino é invadido pelo feminino, a devoção termina em festa … É a prática social dos atores  que opera esses sistemas de classificação, abrindo-os ou  fechando-os  e assim mantém-se e enriquece-se a diversidade da dinâmica urbana que, «além de ser uma propriedade das cidades, deve ser reconhecida como o princípio que as torna cidades» (SANTOS, op. cit., pg. 78).

Concluindo

Foi só um exercício. Tanto o trabalho dos alunos, com suas idas a campo e reflexões sobre os dados colhidos, como este artigo – retomada de alguns  tópicos teóricos,  recomendações metodológicas e também «leitura de leituras». As discussões em aula e o que cada um assimilou, a partir de sua própria experiência e da de seus colegas sem dúvida superam o que aqui foi registrado. Contudo, um arremate sempre é bom, pois permite – mesmo à custa de inevitáveis simplificações – uma comparação entre o que se propôs e o que foi realizado; permite refazer o caminho, observando aqui e ali os fios que ficaram  soltos, os que permitiram certa amarração, e os que vão ficar para a próxima vez…E como  o ângulo escolhido para relativizar a perspectiva habitual foi o da Antropologia, convém recordar o que um autor contemporâneo afirma, a propósito: «Fazer a etnografia é como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escritos não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios do comportamento modelado» (GEERTZ, 1978:20).

Mais do que uma leitura completa ou definitiva do manuscrito – neste caso, a rua Quinze –  o que se pretendeu aqui foi experimentar  um caminho na direção de seus múltiplos significados. 

Este texto tem como base os trabalhos de conclusão dos  alunos em  disciplina por mim ministrada no curso de Pós-graduação lato sensu «Levantamento  de Informações Para Planejamento Urbano», promovido pelo Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-PR em 1991